Falando em Tanto Faz, logo abaixo pequeno trecho do segundo capítulo da primeira parte d’O Encontro Marcado, estreia em novela longa de Fernando Sabino, 1956, cotidiano e prosa, vida real e sonho, juventude em BH e grandes pensamentos, terrorismo artístico-existencial e Terror nas Letras, o inevitável aconteceu, substantivo e não verbo.
– Olhem: comunico-lhes, solenemente, que está fundado o terrorismo. Base do novo movimento: preconizar e difundir o terror, de todas as maneiras, em todas as suas manifestações. O Terror nas Letras, cujo protótipo seria a novela “Metamorfose”, de Kafka.
– Kafka era um terrorista. Incentivar todas as situações terroristas, estabelecer o pânico, lançar o terror.
– E a solução? – perguntou Mauro.
– A solução é a conduta católica – respondeu o amanuense Belmiro.
– A solução é o próprio problema, sabe como é? Não há solução. Imagino a seguinte cena: um congresso de sábios, os mais sábios do mundo, que se reuniram para resolver o problema dos problemas, o problema transcedental, o Problema, tout-court.
– O problema o quê?
– Tout-court. Vá à merda.
– Ah, tout-court. Merci.
– Pois bem: estão reunidos, os sábios, a postos para começar a trabalhar, encontrar a solução do problema e o Presidente do Congresso dá por iniciada a sessão, anunciando que vai, enfim, dizer qual é o Problema que os reuniu. Faz uma pausa, e declara solenemente: ‘Meus senhores! O problema é o seguinte: Não há problema!’
– E daí?
– Daí os sábios terem de resolver o problema da inexistência do problema. É o terror.
– Confesso que não entendo.
– Vocês não entendem porque são burros: no nosso caso, é a mesma coisa. Só que há o problema, o que não há é a solução. Logo, está solucionado.
– E qual é o problema?
– O problema é o terror.
– Ah!
Calaram-se, os três, e riram, deslumbrados à ideia de que agora sim, setavam completamente doidos- os pais tinham razão.
– Es una cosa terrible, la inteligencia!
– Unamuno não era terrorista.
– Dê três exemplos de situação terrorista.
– Um grito dentro da igreja, uma gargalhado no velório, um árabe no elevador.
– Muito brando. É o que se pode chamar, apenas, de ‘terrorismo cor-de-rosa’. O verdadeiro terrorismo é o absurdo mais terrível, por exemplo: o do homem que se apaixona por um fio de cabelo da amada, e quer viver com ele, dormir com ele, ter filho com ele…
– É, meus amigos, o inevitável aconteceu.
– Bom lema para o terrorismo: O inevitável aconteceu! Se considerarmos o aconteceu, aí, como substantivo e não como verbo.
– Precisávamos é de uma coisa para símbolo.
– A coisa – prosseguiu Eduardo: – A Coisa é o símbolo. Ninguém sabe o que é. Está em toda parte e não está em lugar nenhum. Assume todas as formas. Pode ser um sentimento, um objeto, uma cor- só tem que ser coisa, isto é: um substantivo. Por isso concluímos, há pouco, que aconteceu não era verbo. Onde a Coisa estiver, aí estará o terror.
Os outros ouviam, um tanto apreensivos. Eduardo falava sem parar:
– Me lembrei de uma coisa inventada por Salvador Dali – a Coisa era um pão. Sairia no jornal como manchete assim: ‘O Inevitável Aconteceu- A Descoberta do Pão.’ Um pão monumental exatamente igual a um pão francês comum. A diferença estaria no tamanho: mediria dois metros de comprimento. O pão era encontrado na rua, levariam para a polícia. Estará envenenado? Conterá explosivo? Propaganda política? Os comunistas, o pão-para-todos? Anúncio de padaria? Os jornais comentavam e discutiam o que fazer do pão. Era só o assunto ir esfriando, e um pão maior ainda, de cinco metros, amanheceria atravessado no viaduto. Toda a cidade empolgada com o mistério, a polícia desorientada, o pão analisado nos laboratórios. Econtinuava o problema: o que fazer com ele? Para despistar, um de nós escreveria um artigo sugerindo que fosse cortado em milhares de pedaços e doado à Casa do Pequeno Jornaleiro. No Rio, em São Paulo, Recife, Porto Alegre começavam a aparecer pães, cada vez maiores, nos lugares públicos. Eram membros de uma sociedade secreta já fundada, a Sociedade do Pão, que começava a trabalhar. E um dia surgiria outro pão gigantesco em Roma, outro em Londres, outro em Nova Iorque. A humanidade deixaria de se preocupar com seus problemas, as guerras seriam esquecidas, até que se resolvessem o mistério do pão. Era a vitória pelo Terror.
– Você já pensou no tamanho do forno para assar esse pão?
– Isso não é problema para nós: a ideia é de Salvador Dali, que aliás, é um vigarista.
– É uma besta.
– Falso terrorista
– Abaixo Dali!
Imagem daqui.