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Reinaldo Moraes & Julio Cortázar

Falando no Cortázar, Reinaldo Moraes conta de quando conheceu o argentino, durante o ano que passou fundado por uma bolsa em Paris – experiência que originou o Tanto Faz, do qual, aliás, a história abaixo é tipo um outtake:

Nos anos 70, fiquei amigo do Davi Arrigucci Jr, professor de literatura da USP, grande ensaísta, que sabe tudo de Cortázar. Em 1979 ganhei uma bolsa para estudar em Paris. Então o Davi falou: “já que você gosta tanto do Cortázar, leva esse disco para ele”. Era um vinil de Bicho, do Caetano Veloso. Porque o Cortázar tinha vindo para o Brasil em 1972 e visto um show da Bethânia e do Caetano – inclusiva ele achou que a Bethânia era o Caetano na versão feminina, estilo Shiva e Parvati, o deus feminino e masculino dos hindus. Davi fez uma dedicatória e disse pra eu levar para o Cortázar em Paris, deu o endereço e tal. Pensei: “porra, maravilha”.

Cheguei lá, nem tomei banho, peguei o telefone e liguei. Ninguém atendeu. Tinha um amigo lá, o Giba Vasconcellos, que me acalmou e tal, falou que ele poderia não estar na cidade. Eu ligava quase todo dia. Chegou o outono e nada. Aí o Giba falou: “vamos lá na casa dele”. Pegamos o endereço e fomos. Ele morava numa rua no centro, num bairro que tem um comércio muito chique, mas na época tinha uns prédios residenciais bem de classe média. O endereço era assim: “Rua tal, número 68”. Chegamos lá e vimos as caixas de correio, típicas dos prédios de Paris. Em nenhuma delas estava escrito “Cortázar”. Aí, ficamos ali pensando, decidindo entre ir embora ou não, quando demos dois passos para fora, vimos que existia o número 68 bis. Tentamos naquele, e numa das caixas de correio estava escrito monsieur Cortázar. Mas aí não sabíamos o número do apartamento, porque só tinha o nome.

Enquanto a gente estava nessa discussão, ouvimos um barulho nas escadas, por onde descia uma equipe de TV, com todos os equipamentos, todos loirinhos, e atrás deles o Cortázar. Ele olhou para a gente. Eu e meu amigo éramos duas figuras estranhas, barbudões, cabeludões. Cortázar deve ter pensado: “tô encrencado”. Olhei para ele, não sabia falar quase nada em francês ainda – só saía um bon jour, mas não sabia exatamente em que hora falar isso -, então misturei um francês com português, coisa horrível. E ele respondeu: “ah, o disco do Caetano Veloso, que bom, você é amigo do Davi, então?” Mandou um português ali, bicho, tranquilo, quase melhor que o meu.

E aí ficamos conversando, ele um sujeito simpático, um pouco mais alto do que eu, tinha uns 75 anos, mas sem um fio de cabelo branco, uns olhos azuis, um cara bonito pra chuchu. Ficamos batendo um papinho, por uns 20 minutos, e os caras da TV esperando. Até que o Cortázar disse: “tenho que ir com eles agora, mas liga pra mim, meu telefone mudou, vou viajar, mas daqui um mês você pode ligar”. Fiquei um ano tentando ligar, mas nunca mais o vi. Esse foi o dia em que conheci Cortázar.

Daqui.

Retrato de Reinaldo por Renato Parada, daqui.

Madrugada de inverno

Se uma mulher por quem eu tenho um certo tesão me interrompesse o sono numa madrugada de inverno me pedindo colo, eu não hesitava: ora, vem correndo, minha flor, eu diria. Braços abertos pra ti. Que é como Flora me recebia sempre que eu dava as três buzinadinhas convencionais na frente do seu prédio, na rua Morato Coelho. Luz na janela, sua silhueta de camisola me acenando, o molho de chaves que estalava metálico na calçada. Quase nunca falhava. Acho que Flora foi a mulher que mais gostou de trepar comigo; talvez mais ainda depois que nos separamos. As feministas que me desculpem, mas é do caralho saber que há na cidade pelo menos uma mulher disposta a te amar a qualquer hora do dia ou da noite. Servilismo sexual? Nada disso. É ligação, transa, curtição. Flora até reclamava quando eu ficava muito tempo sem aparecer. O que acontecia nas nossas respectivas fases de vacas gordas afetivas. Ou quando pifou a buzina do meu carro. Por preguiça, adiava sempre o auto-elétrico. Saía dos bares de porre e baixava na Morato Coelho com o passarinho literalmente na mão. Só então me dava conta de que estava sem buzina. Da primeira vez, resolvi gritar. A velha do terceiro acordou com os meus pungentes apelos – Flora! Flora! – ecoando na rua deserta e me despejou lá de cima um pinico de ameaças terríveis – síndico, revólver, polícia, o scambau. Só Flora não ouviu. Flora só ouvia buzina, nosso código: um toque, dois toques, três toques. De leve.

Mais uma do Tanto Faz.

Quieto no meu quarto

Noite branca. Nada passa pro papel. Vontade imensa de escrever, mas tem boi na linha. Outro cigarro, outro cigarro. O álcool começa a fazer minha cabeça. E se eu parasse de beber e dar bola e agüentasse a palo seco a porra da ansiedade? Outro dia tentei e não deu pé. Suei frio, deu tremendeira, achei que ia pirar. Não conseguia juntar três palavras numa frase; caí então no rum, única bebida que sobrara em casa. Matei metade da garrafa. A noite ficou mais suportável, escrevi uma carta pra Sônia com desaforos mais ou menos líricos. A bebida desce raspando as unhas na minha garganta e abrindo um buraco ardente no meu estômago. Meu pobre estômago malhado. Na janela, o cubo da noite convida poeticamente pro salto.

Me lembro da manhã de verão ensopada de sol, numa rua do Leblon, em que vi Drummond. Camisa abotoada até o pescoço. Cruzei com ele e seus olhos cinzentos fixos em qualquer coisa que andava à sua frente e não se via. Não eram os edifícios, não eram as caras da rua, nem os outdoors. Não se via. Tive um tchans muito estranho vendo a cara do poeta, que me pareceu de uma serenidade quase sem vida. E aqueles olhos que olhavam o que não se via. Passou por mim e eu vupt fiz meia-volta e fui atrás dele. O homem que uma vez disse que é apenas um homem seguia imperturbável seu caminho, ali na minha frente.

Fui seguindo Drummond pelas calçadas do Leblon até me convencer de que o homem à minha frente não era o poeta. Era mesmo apenas um homem dentro dos seus sapatos. O poeta está guardado em mim, num lugar que nem desconfio, e não tem cara e não tem corpo. É só uma vibração que me acompanha nas minhas noites brancas, vida afora. Larguei de segui-lo. Voltei pelo mesmo caminho, fui cuidar da vida.

Não seguro a barra dessa solidão espessa sem um copo na mão. E um charo bem enrolado. tem razão o Pascal: o homem não toma jeito enquanto não aprende a ficar quieto no seu quarto. Ele diz também que a calma entedia o cidadão e o obriga a sair e “mendigar o tumulto”. Jogo mais uísque nas pedras.

A França, quietinha lá fora. Acho que francês segura melhor a barra da solidão que brasileiro. Parece, pelo menos. O brasileiro tem medo pânico da solidão. É um ser que padece de pluralidade. Um cara solitário no Brasil é tratado socialmente como tuberculoso e se sente pessoalmente como leproso. Brasileiro só acata a solidão na privada e no caixão. E, às vezes, nem aí: quantos não caem na vala comum…

Fiz trinta anos e ando com medo de levar a breca na vida. Ficar sem grana, sem amigos, sem mulher. Um ratê baixo astral, desses que sentam no meio-fio e vertem lágrimas grossas como pitangas. E se deixam lamber na cara por um vira-lata sarnento. Te esconjuro, Nelson Rodrigues!

Do Tanto Faz, do Reinaldo Moraes.