Tag Archives: Caetano Veloso

40 Anos de Quem é Quem …é João Donato

Donato-Quem40-Q

Dentro da série de comemorações de 80 anos de João Donato em 2014, nos próximos dias 27 e 28 de fevereiro, no Teatro do Sesc Pinheiros, show especial traz o álbum clássico de 1973 de João Donato “Quem é Quem” apresentado pela primeira vez ao vivo. Com banda nova com músicos de São Paulo incluindo integrantes da big band Bixiga 70 e com convidados como as cantoras Tulipa Ruiz e Mariana Aydar e o produtor original do disco, Marcos Valle, o espetáculo relembra o som e as canções do cultuado disco de Donato nos 40 anos do lançamento do LP que trazia hits como “A rã”, “Cala boca menino” e “Amazonas”.

Quem-logo-B-transp

40 ANOS

João Donato está à vontade. Prestes a completar 80 anos – em agosto de 2014 -, continua produtivo, inspirado e moderno como sempre. Amigo íntimo da Música, Donato passou por todos os estilos ao longo da carreira, sempre livre, sempre à vontade. “Quem é Quem” foi seu primeiro disco com letra e cantado, produzido em 1973 por Marcos Valle no Brasil após longa temporada de Donato nos EUA. Gravado com participações de músicos como Hélio Delmiro, Bebeto Castilho, Lula Nascimento, Naná Vasconcelos e a cantora Nana Caymmi, o álbum trazia arranjos de cordas e sopros de Gaya, Laércio de Freitas, Ian Guest, Dori Caymmi e do próprio Donato, disco-símbolo da sonoridade perfeita dos discos brasileiros dos anos 70.

Carregado de brincadeiras em estéreo, groove no alvo e arranjos geniais, o disco tinha como essência muito piano elétrico com Donato no rhodes, canções instantaneamente clássicas e presença de espírito suficiente para por exemplo colocar no fim de uma música um solo de declamação de carta, falando d’“aquela poeira, rapaz, no caminho da cachoeira”. Com sua naturalidade tranquila e musicalidade máxima, Donato desde sempre fundia a espontaneidade do jazz com um agradável senso pop e musicalidade intensamente brasileira, e em “Quem é Quem” chegou a auge de criatividade em disco, mestre absoluto do zen-groovismo, das harmonias bem encontradas, da eterna busca das notas bonitas, do silêncio bem colocado.

Da mesma geração de João Gilberto e Tom Jobim, João Donato levou seu piano e canções ao jazz americano com músicos como Chet Baker, à música latina de figuras como Mongo Santamaria e Cal Tjader e muito da música brasileira dos últimos 40 ou 50 anos. “Quem é Quem” aparece na sua discografia logo após pérolas psicodélicas como seus discos americanos “A Bad Donato” e “Donato/Deodato” e logo antes dele iniciar relação com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa que renderia canções em parceria e aparições essenciais em discos como “Cantar” de Gal em 74 e “Qualquer Coisa” de Caetano em 1975.

Na época pouco apoiado por sua gravadora, coube a Donato cuidar do lançamento de seu disco “Quem é Quem”, ao subir no Morro da Glória e lá de cima lançar um por um uma caixa inteira de LPs para quem passava por ali. Apresentado ao vivo hoje pela primeira vez, quarenta anos depois do lançamento, o show que acontece no Sesc Pinheiros é especial, com encontro de João Donato com novos músicos de São Paulo, incluindo membros da banda paulistana Bixiga 70, e participação estrelares de Marcos Valle, grande inventivador e produtor do disco em 73, Mariana Aydar, amiga que em seu primeiro disco em 2006 já gravou com Donato, e Tulipa Ruiz, admiração mútua e encontro inédito e afetivo.

Espetáculo carinhosa e artesanalmente criado relembrando e atualizando o som do álbum que trazia clássicos como “A rã”, “Cala boca menino” e “Amazonas”. Com a simplicidade elegante de sua música e a sutileza e beleza que coloca a cada nota e a cada silêncio entre elas, João Donato é músico sem era, de todas as gerações. Seu tempo são todos: música bonita não tem época.

27 e 28 de FEVEREIRO, 21h
SESC PINHEIROS | RUA PAES LEME 195

FICHA TÉCNICA
MÚSICOS
Tulipa Ruiz, voz
Mariana Aydar, voz
Marcos Valle, voz, piano elétrico Fender Rhodes e minimoog
João Donato, voz, piano e piano elétrico Fender Rhodes
Marcelo Dworecki, baixo elétrico
Guilherme Kastrup, percussão
Décio 7, bateria
Mauricio Fleury, guitarra
Anderson Quevedo, sax tenor, sax barítono e flauta
Richard Fermino, trombone, clarone e flauta
Cuca Ferreira, sax barítono, flauta e flautim
REPERTÓRIO
Chorou, chorou (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Terremoto (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Amazonas (João Donato)
Fim de sonho (João Donato / João Carlos Pádua)
A rã (João Donato / Caetano Veloso)
Ahiê (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Cala boca menino (Dorival Caymmi)
Nãna das águas (João Donato / Geraldo Carneiro)
Me deixa (João Donato / Geraldo Carneiro)
Até quem sabe (João Donato / Lysias Enio)
Mentiras (João Donato / Lysias Enio)
Cadê Jodel (João Donato / Marcos Valle)
Não tem nada não (João Donato / Eumir Deodato / Marcos Valle)
Flor de maracujá (João Donato / Lysias Enio)
REALIZAÇÃO
Direção Ronaldo Evangelista
Produção Executiva Agogô Cultural
Técnico de som Fernando Narcizo
Técnico de PA Rubinho Marques
Desenho de Luz Marcos Franja
Roadie Júnior Zorato
Apoio Estúdio Traquitana
Foto Manoela Cardoso

João Gilberto disco-a-disco

Onze álbuns gravados em estúdio e metade disso ao vivo – cinco e meio. Menos de 17 discos de registro do som que tanto impacto causa na música há 50 anos: a voz e violão de João Gilberto. Mais de cinco décadas depois, o assombro e a influência que a arte de João Gilberto ainda inspira são os mesmos de quando lançou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1959. João Gilberto já sabia tudo: constantemente reinventando e evoluindo suas canções e interpretações, toda sua obra é lida como a evolução de uma sonoridade única, elaboradamente simples e infinitamente sofisticada. Logo abaixo (originalmente para o Uol em 2011, nos 80 anos de João), sua discografia comentada, do primeiro disco, lançado em 1959, até o mais recente, de 2004.


“Chega de Saudade” (1959)

Depois de participar do disco “Canção do Amor Demais” (de Elizeth Cardoso) e lançar dois 78 rotações em 1958, João Gilberto chegou à modernidade dos LPs ajudando a inventá-la. A voz íntima do ouvido, o som de violão absolutamente claro, a abordagem ao mesmo tempo casual e lapidada: eram muitos elementos novos que somavam àquele núcleo de criação exemplar. Além da remodernização de antigos sambas da década de 40 – um Dorival Caymmi, um Marino Pinto, dois Ary Barrosos -, contribui muito com o sabor de novidade a presença do produtor Tom Jobim, com três canções, seus pianos discretos e seus arranjos cheios de pequenos detalhes nas cordas e sopros, como contracantos de João.

Grande momento: “Morena boca de ouro”, releitura de um sucesso de 1941 de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas, aqui com o piano de Tom Jobim e a economia do arranjo impressionantes até hoje.


“O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960)

O segundo LP de João Gilberto já começava ousado na capa, em preto-e-branco solarizado, criada por Cesar Villela, que em breve faria as famosas capas da gravadora Elenco. Gravado pouco mais de seis meses depois do primeiro disco, e novamente com direção musical de Tom Jobim, o álbum trazia no repertório seis novas canções do produtor, mais um Caymmi e um antigo sucesso nunca gravado do tempo de conjuntos vocais: “O Pato”.

Grande momento: Abrindo com vocalises que reinventam as harmonias da versão original do conjunto vocal Anjos do Inferno, de 1945, “Doralice”, de Caymmi, ganha versão definitiva com João Gilberto, em nada além de um minuto e 29 segundos. De acompanhamento, além de seu violão e leve percussão, a modernidade do piano delicado e cristalino de Tom Jobim e breves comentários da flauta no contraponto.


“João Gilberto” (1961)

No mesmo fôlego, um ano depois foi gravado o terceiro LP, homônimo, de João Gilberto. Em algumas faixas, acompanhado do conjunto do pianista Walter Wanderley, todo o resto novamente com Tom. Além de três novas do produtor, o repertório continua lembrando antigos sambas dos anos 40, desta vez com dois Caymmis, um Geraldo Pereira e um Bide/Marçal.

Grande momento: “A primeira vez”, samba de Bide e Marçal cantado por Orlando Silva em 1939, surge em versão quase invertida: o volume do original é traduzido em arranjo quase solo de voz-e-violão, apenas com o piano ocasional de Tom.


“Getz/Gilberto” (1964)

E então, o mundo descobriu. Gravado em Nova York ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz (e com Tom ao piano), o álbum foi lançado pela gravadora de jazz Verve e se tornou famoso em todo o planeta, ganhando cinco prêmios Grammy. Cantada pela mulher de João, Astrud, “Girl from Ipanema” saiu em single (sem a voz de João) e vendeu mais de um milhão de cópias – a canção se tornou uma das mais regravadas da história.

Grande momento: O máximo de sublime de João em disco se revela em sua interpretação de “Pra machucar meu coração”, do então recém-falecido Ary Barroso, que João muito admirava e havia acabado de conhecer. Perfeição no piano de Tom, sax de Getz, baixo e bateria de Tião Neto e Milton Banana, e João, no seu mais suave e musical.


“Getz/Gilberto II” (1964)

O primeiro disco ao vivo (ou meio) de João, gravado no Carnegie Hall em outubro de 1964, lado B de um LP com Stan Getz do outro. Na versão em CD, cinco faixas bônus trazem João e Getz juntos, com Astrud.

Grande momento: Apesar de não manter a aura de magia do encontro em estúdio, “Você e eu” ao vivo é mais um interessante encontro do violão ritmado do João com o sax jazzístico de Getz e a voz vaporosa de Astrud.


“En Mexico” (1970)

Gravado durante temporada de João Gilberto no México, como já fica claro no título, o álbum só foi gravado seis anos depois do último, e desta vez com arranjos de Oscar Castro Neves. Entre as novidades do repertório, três boleros, dois Jobins, duas autorais sem letra e uma composição de seu amigo João Donato gravada dois anos antes por Sergio Mendes: “The Frog”.

Grande momento: João canta tão próximo do microfone que sua respiração funde-se com sua voz com inigualável efeito de intimidade com o ouvinte em “Astronauta” (também conhecida como “Samba da pergunta”), só com seu violão, piano pontuando e etéreas cordas ao fundo.


“João Gilberto” (1973)

O auge do minimalismo zen de João, gravado novamente em Nova York. Desta vez acompanhado apenas do percussionista Sonny Carr e, em uma faixa, da voz de sua então nova esposa, Miúcha. Além de um Jobim, três faixas sem letra e mais alguns sambas antigos, a grande novidade são canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Grande momento: É irresistível acompanhar as harmonias vocais que João cria em contracanto com Miúcha em “Isaura”, sua versão do samba de 1945 de Francisco Alves. João, virtuose dos detalhes.


“Best of Two Worlds” (1976)

Com repertório baseado no chamado “álbum branco”, de três anos antes, traz novo encontro com Stan Getz, mais de dez anos depois do “Getz/Gilberto” original. Duas faixas são cantadas solo por Miúcha e uma novidade do repertório é “Retrato em Branco e Preto”, parceria do irmão da noiva, Chico Buarque, com Tom Jobim.

Grande momento: Cantada com serenidade e emoção por João, “Ligia” é uma novidade de Tom Jobim até hoje: João canta a primeira versão da letra, diferente da que depois ficou mais conhecida, com retoques de Chico Buarque. Getz aparece com dois solos dobrados, sobrepostos com melodias diferentes.

(Bônus momento: “É preciso perdoar“.)


“Amoroso” (1977)

Trazendo composições em inglês, italiano e espanhol e arranjos de orquestra do alemão Claus Ogerman – que havia cuidado da orquestra nos discos solo de Tom Jobim -, “Amoroso” foi desde seu lançamento recebido como momento de gala para João e é até hoje um de seus álbuns mais conceituados entre jazzistas.

Grande momento: Não é nem preciso entender a letra em italiano de “Estate” para ficar tocado com sua sensibilidade. Lendo-se, então, o “verão que criou nosso amor” e agora é um “legado de dor”, emocionante.


“João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” (1980)

Segundo disco ao vivo de João, de um especial de TV da Rede Globo com plateia, orquestra e participações de sua filha Bebel Gilberto (então com 14 anos) e Rita Lee. Johnny Alf e Lamartine Babo são surpresas do repertório.

Grande momento: Antiga marchinha de 1939 de Lamartine Babo, cantada por Mário Reis em dueto com Mariah, “Jou Jou Balangandãs” vira pura bossa com a voz da tropicalista Rita Lee, interpretações em pura doçura.


“Brasil” (1981)

Gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia: o violão de João, comentários dramáticos nas cordas e percussões e as quatro vozes se fundindo – Bethânia canta suave como nunca antes ou depois. Quase um disco conceitual sobre a Bahia, com versões de Caymmi, Ary Barroso e, novidade, Os Tincoãs.

Grande momento: Versão do standard americano “All of me” pelo letrista Haroldo Barbosa, “Disse alguém” é uma pérola, com João fazendo uma adaptação jazzística da sua batida ao violão, pequenas alterações na melodia e toda uma nova cor nas imagens em português.


“Ao Vivo em Montreux” (1986)

Terceiro disco ao vivo e um dos melhores momentos de João no palco, foi gravado – todo de voz e violão – no famoso festival de jazz suíço em 1985 e lançado em LP duplo, depois CD simples com duas músicas a menos.

Grande momento: O antigo sucesso de 1948 de Haroldo Barbosa na voz d’Os Cariocas, “Adeus América”, ganha todo um novo contexto na voz mântrica de João Gilberto, que tanto tempo morou nos Estados Unidos e havia retornado ao Brasil há pouco.


“João” (1991)

Com arranjos de cordas do americano Clare Fischer sobre a base de violão e voz de João, o disco não atinge os mesmos níveis de Amoroso, mas tem ótimo repertório, com Noel Rosa, Cole Porter, bolero, chanson.

Grande momento: João parece ter total controle sobre como fazer o tempo parar, andar para frente ou para trás em seus ritmos de violão e andamentos vocais. Em “Eu sambo mesmo”, de Janet de Almeida, cantada pelos Anjos do Inferno em 1946, o sublime é atingido já nos primeiros segundos.


“Eu Sei Que Vou Te Amar” (1994)

O quarto disco ao vivo de João e o mais sem graça, com mixagem imperfeita, edição brusca e repertório sem surpresas. “Você não sabe amar” é boa novidade.

Grande momento: “Lá vem a baiana”, de Caymmi, sempre perfeito na voz de João.


“Live at Umbria Jazz Fest” (1996/2002)

Quinto disco ao vivo de João, gravado na Itália em 1996 e lançado em CD em 2002. Mais atualizações de canções de todas as fases da carreira de João.

Grande momento: “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, tão conhecida e sempre tão nova com João.


“Voz e Violão” (1999)

Produzido por Caetano Veloso, foi o último de estúdio gravado por João e o único inteiramente só de voz e violão. O repertório recupera sambas antigos de Bororó, Herivelto Martins, uma raridade de Tom Jobim, dois Caetanos e novas lapidações de “Chega de saudade” e “Desafinado”, cada vez mais sintéticas.

Grande momento: Dessa vez João Gilberto não foi tão longe, apenas 1980, para encontrar uma maravilha. “Você vai ver” foi lançada no álbum Terra Brasilis, de Tom Jobim, como uma elegante canção de fim de amor, aqui transformada em pura candura.


“In Tokyo” (2004)

País que cultua João Gilberto talvez até mais que o Brasil e recebe visitas frequentes para turnês, o Japão rendeu o mais recente disco ao vivo de João, sexto de sua carreira. Gravado em 2004, João tinha então 73 anos e faz ótima performance, tranquila e depurada.

Grande momento: Aracy de Almeida cantava “Louco” de Wilson Batista em 1946, e desde os anos 50 João a traz em seu repertório, apesar de nunca tê-la gravada em estúdio. Canta ao vivo a história do louco que chora e anda pelas ruas, transformando-se até num vagabundo.

plano sequência

Um, dois, três e já acontece a première do novo de Tulipa, sequel de seu primeiro álbum em longa-metragem, onde estão nossos protagonistas dois anos depois. Sinopse com leves spoilers logo abaixo, crítica que escrevi do álbum para a revista Rolling Stone.

Tudo Tanto, segundo disco de Tulipa Ruiz, começa como se o filme estivesse voltando do intervalo. Uma virada de bateria e já estamos no meio da ação, plano sequência, carros em perseguição, janela do trem, encontro romântico com travelling de câmera, cinéma vérité, musical, suspense e comédia. Mudando de cenário em movimento, para não deixar a mágica escapar, a mocinha da película encara com fascínio especial a aventura do segundo álbum, primeira reinvenção.

A musicalidade natural, a vivacidade dos arranjos, a graça espontânea das composições: tudo mais ou menos igual, só que mais. Dois anos depois de Efêmera, a leveza continua lá, mas entre novas nuances e sugestões. A produção do irmão e guitarrista Gustavo Ruiz – parceiro em sete das onze composições do álbum – é tão prodigiosa quanto são engenhosos os arranjos sobre os quais a voz de Tulipa flutua, inventa timbres, revela melodias. Em cada enquadramento, a cada esquina dobrada, pelos detalhes de cada faixa, salta aos ouvidos a unidade, o som claro e direto, totalmente contemporâneo.

Empreendimento familiar, com o pai Luiz Chagas também tocando guitarra e todos juntos chegando a grandes momentos, a banda base de Tulipa tem ainda Marcio Arantes no baixo e o baterista Caio Lopes, em algumas faixas com o núcleo carioca de Kassin, Stephane San Juan e Alberto Continentino. Em cinco faixas, arranjos de cordas do jovem Jacques Mathias – amigo de São Lourenço, cidade mineira onde Tulipa cresceu. Cada músico parecendo compreender o espírito simbiótico das melodias, letras, ideias, criando junto universos e enriquecendo o imaginário das canções. Em especial as cordas, além de criarem simples camas harmônicas ou complexos desenhos melódicos no ar, são surpreendentes em sua intimidade com as vozes e arranjos de bases, complementando dinâmicas em widescreen.

Como no momento Dupratzinho em “Desinibida”, dos mais bonitos do álbum, amorosa canção-retrato de uma figura tão do nosso tempo, bossinha em parceria com Tomás Cunha Ferreira, da banda portuguesa Os Quais. O grupo São Paulo Underground aparece com groove minimalista no acompanhamento de “Cada voz”, composição já antiga de shows, aqui renovada e pronta pra nova fase. Já “Víbora”, penúltima faixa de “Tudo Tanto”, é um showstopper. De intensidade eletrizante, foi criada em ensaio em parceria com a banda e tem segunda parte escrita por Criolo (que participa da gravação com sussurros). Sobre uma base climática de aura blues, em desenvolvimento melódico quase falado, Tulipa manda: “a gente aqui esperando você falar alguma coisa e você aí bem na nossa frente mudo / a gente nunca esperou isso de você, essa coisa esquisita de ficar em cima do muro”.

De vez em quando, todos os olhos se voltam de dentro da escuridão da plateia esperando e querendo um herói. Como se expor e manter a naturalidade? Como não soar banal, combinado, calculado, premeditado, fake? Nem sempre dá pra ser bom, nos diz “Bom”. Mil coisas por segundo, milhões de coisas que a gente pode ser, conta “É”. Tudo para ter tudo, mas tanto que falta para chegar no ponto, aponta “Ok”. “Expectativa” deixa no ar: como deixar o inesquecível acontecer, o invisível aparecer, o imprevisível permanecer? O pop não é efêmero se é inesquecível. “Dois cafés” é surpreendente e delicioso encontro com a voz de Lulu Santos, em participação de levar Oscar de coadjuvante. Bom lembrar que uma perfeita canção redondinha pode ser inteligente, esperta, real, crônica da vida normal. Passa tudo, o que fica claro é que o pop de Tulipa é dela própria. Se prestar atenção, você ouve as conexões – estão lá Itamar Assumpção e Caetano Veloso, Grupo Rumo e Gal Costa, Yoko Ono e Wings, Of Montreal e Lulu Santos – mas tudo a se fundir em algo novo, como se Tulipa sentisse a graça das influências pelo que inspiram a criar, mais que reproduzir.

Reinaldo Moraes & Julio Cortázar

Falando no Cortázar, Reinaldo Moraes conta de quando conheceu o argentino, durante o ano que passou fundado por uma bolsa em Paris – experiência que originou o Tanto Faz, do qual, aliás, a história abaixo é tipo um outtake:

Nos anos 70, fiquei amigo do Davi Arrigucci Jr, professor de literatura da USP, grande ensaísta, que sabe tudo de Cortázar. Em 1979 ganhei uma bolsa para estudar em Paris. Então o Davi falou: “já que você gosta tanto do Cortázar, leva esse disco para ele”. Era um vinil de Bicho, do Caetano Veloso. Porque o Cortázar tinha vindo para o Brasil em 1972 e visto um show da Bethânia e do Caetano – inclusiva ele achou que a Bethânia era o Caetano na versão feminina, estilo Shiva e Parvati, o deus feminino e masculino dos hindus. Davi fez uma dedicatória e disse pra eu levar para o Cortázar em Paris, deu o endereço e tal. Pensei: “porra, maravilha”.

Cheguei lá, nem tomei banho, peguei o telefone e liguei. Ninguém atendeu. Tinha um amigo lá, o Giba Vasconcellos, que me acalmou e tal, falou que ele poderia não estar na cidade. Eu ligava quase todo dia. Chegou o outono e nada. Aí o Giba falou: “vamos lá na casa dele”. Pegamos o endereço e fomos. Ele morava numa rua no centro, num bairro que tem um comércio muito chique, mas na época tinha uns prédios residenciais bem de classe média. O endereço era assim: “Rua tal, número 68”. Chegamos lá e vimos as caixas de correio, típicas dos prédios de Paris. Em nenhuma delas estava escrito “Cortázar”. Aí, ficamos ali pensando, decidindo entre ir embora ou não, quando demos dois passos para fora, vimos que existia o número 68 bis. Tentamos naquele, e numa das caixas de correio estava escrito monsieur Cortázar. Mas aí não sabíamos o número do apartamento, porque só tinha o nome.

Enquanto a gente estava nessa discussão, ouvimos um barulho nas escadas, por onde descia uma equipe de TV, com todos os equipamentos, todos loirinhos, e atrás deles o Cortázar. Ele olhou para a gente. Eu e meu amigo éramos duas figuras estranhas, barbudões, cabeludões. Cortázar deve ter pensado: “tô encrencado”. Olhei para ele, não sabia falar quase nada em francês ainda – só saía um bon jour, mas não sabia exatamente em que hora falar isso -, então misturei um francês com português, coisa horrível. E ele respondeu: “ah, o disco do Caetano Veloso, que bom, você é amigo do Davi, então?” Mandou um português ali, bicho, tranquilo, quase melhor que o meu.

E aí ficamos conversando, ele um sujeito simpático, um pouco mais alto do que eu, tinha uns 75 anos, mas sem um fio de cabelo branco, uns olhos azuis, um cara bonito pra chuchu. Ficamos batendo um papinho, por uns 20 minutos, e os caras da TV esperando. Até que o Cortázar disse: “tenho que ir com eles agora, mas liga pra mim, meu telefone mudou, vou viajar, mas daqui um mês você pode ligar”. Fiquei um ano tentando ligar, mas nunca mais o vi. Esse foi o dia em que conheci Cortázar.

Daqui.

Retrato de Reinaldo por Renato Parada, daqui.

pop-eye

Breves notas, aspas, olhares, recortes e futurações de por aí.

*Esphera, o disco novo de Arnaldo Baptista: produzido por Fernando Catatau. Imagem via. No play, a primeira faixa divulgada do álbum, “I don’t care“, Arnaldo tocando todos os instrumentos.

*Falando em Arnaldo, há pouco pintou no eBay o raro compacto de 1966 do O’Seis, conjunto pré-Mutantes dele com Rita e Sérgio. Vendido como “Cálice Sagrado dos discos brasileiros”, fechou o leilão online a 4.150 dólares.

*No próximo disco de Tom Zé, com patrocínio da Natura, quem participa é Emicida.

*E o segundo álbum de Tulipa já está quase lá. No blog do Natura Musical (que também patrocina o disco), ela comenta: “Acho que vai ser uma consequência do Efêmera, como se fosse a continuação de um livro“.

*Lucas Santtana passa o mês na Europa e promete atualizações em vídeo em tempo real.

*Céu e Curumin também passam o mês tocando na Europa. (E se encontram com Lucas em uma data no Koko em Londres, La Linea, 19 de abril.)


*Falando na Céu, vem aí Caravana Sereia Bloom em vinil.


*E falando no Curumin, já ouviu “Selvage“, faixa 2 do a sair logo menos álbum Arrocha, seu terceiro? O som perturba a tua carne, te movimenta.

*Miguel Atwood-Ferguson, violista californiano, está finalizando seu primeiro álbum solo (que sai pela Brainfeeder do Flying Lotus) e comentou no Rio Fanzine suas experiências brasileiras: “Eu era um adolescente quando enlouqueci ao ouvir pela primeira vez Villa-Lobos e Tom Jobim. Foi quando descobri a música brasileira. Aprendi muito trabalhando com Arthur Verocai, um músico fenomenal, e foi fantástico também trabalhar com Seu Jorge e Marisa Monte. Foi como abrir portas da minha percepção musical.

*Marcelo Cabral, contrabaixista do MarginalS, Sambanzo etc e coprodutor dos discos de Lurdez e Criolo, fala disso tudo e mais sua história com skate no Tapetes Sírios. Sobre as canções de Criolo e a “tendência” atual do rap em incorporar música cantada, conta: “Não foi uma coisa pensada. O Criolo canta o dia inteiro , se você conviver 1 pouco com ele, verá. Cada 1 é de 1 jeito, não da pra alguém começar a cantar de 1 dia pro outro. Ele já tinha essas canções a algum tempo, não foi invenção de produtor ou alguma sacada, só selecionamos o que achamos de melhor nele. Sou 100% a favor em investir, estudar e se aprimorar a cada dia, mas isso não quer dizer 1 MC começar a cantar, a não ser que ele realmente queira isso de coração e isso faça parte dele, senão fica falso, ou também então o inverso também seria uma evolução, tipo cantor querer virar MC, não rola.

*Falando nele, Criolo foi decapitado no Rio e em junho volta lá pra cantarDe frente para o crime” com João Bosco, Theatro Municipal, Prêmio da Música Brasileira.


*Com direção de Toddy Ivon e participações de Hyldon, Catra, e, bem, Tico Santa Cruz, “Chama os mulekes” (que beat!) é o vídeo novo (um curta, na real) do grupo de rap carioca Cone Crew Diretoria. Mais de um milhão de views em menos de uma semana, repare.

*O novo do D2 está pronto.

*Marcelo Camelo fala da recente mudança de volta pro Rio de Janeiro, dos shows dos Los Hermanos que acontecem a partir do próximo dia 20, de compor com a Mallu e do começo de seu disco novo em conversa rápida com Lorena Calábria, no blog novo dela, aqui. Ela ainda pergunta se ele se incomoda com o clima de “karaokê coletivo” que acontece em suas apresentações. Ele: “Tenho dúvida pessoal sobre essa relação. Por um lado, a platéia cantando é um terceiro elemento, vai somando. Não chega a atrapalhar. E penso que é proibido proibir as pessoas de se emocionar. Jamais vou fazer esse papel. Minhas músicas são assobiáveis, cantaroláveis. Isso desde os primórdios do Los Hermanos, nos shows do Empório. Por isso, aceito tudo que vier.

*Já Rick Bonadio, um dos produtores (sem assinar) do primeiro disco dos Hermanos, dá na Playboy sua opinião sobre a banda: “Eles são muito talentosos, só que sempre foram garotos com dinheiro, eles nunca precisaram de dinheiro, ninguém ali precisou fazer sucesso para viver. Quando o cara não precisa de dinheiro, é muito fácil o cara se achar, sabe? Se eles precisassem de dinheiro, estavam tocando “Anna Julia” até hoje, essa é a verdade, vamos falar português claro. (…) Muito lá atrás, na época que eles fizeram um disco que era chato, insuportável, lembra? Um disco que não vendeu, foi um fracasso, logo depois de “Anna Julia”. Eu falei: “Vocês são loucos, querem afundar com a carreira de vocês?”. Mas são uns plaboyzinhos da Barra da Tijuca, então…Aqui.

*PAS lista um glossário de músicos ou figuras relevantes que integram os quadros de diretores das associações filiadas ao ECAD, de Danilo Caymmi (Abramus) a Sandra de Sá (UBC).

*”Esse som arranhado é normal?”, pergunta uma senhora a Caetano durante o show de Gal no Rio, incomodada com as programações de Kassin. “É música eletrônica moderna. E cala a boca que eu quero ver o show!”, ele tenta interromper a interrupção. Paula Lavigne, claro, filmou, dá pra ver aqui.


*O jornal Estado de Minas encontrou em Nova Friburgo Tonho e Cacau, os dois garotos que ilustram a capa do álbum Clube da Esquina, de Lô Borges e Milton Nascimento. Cafi, hoje 61 anos, que fez a foto original, conta do momento em 1972: “A gente ficava andando com o Fusquinha do Ronaldo Bastos pelas estradas, tirando foto de nuvens, porque a gente ia criar a nossa empresa, Nuvem Cigana. Uma das nuvens, inclusive, está no encarte do Clube da Esquina”. Ao ver os meninos, decidiu fazer o registro: “Foi como um raio”, lembra Cafi. “ É uma imagem forte. A cara do Brasil. E foi na época em que vários artistas estavam exilados fora daqui. E tinha essa coisa da amizade presente também. O Milton adorou a foto e ela acabou indo para a capa.”

E Tonho, hoje com 47 anos, vendo pela primeira vez o LP: “Oh, sou eu e o Cacau. Como é que vocês conseguiram isso? Quem tirou essa foto? Eu me lembro desse dia. (…) Alguém do carro me gritou e eu sorri. Estava comendo um pedaço de pão que alguém tinha me dado, porque eu estava morrendo de fome, e para variar descalço. Até hoje não gosto muito de usar sapato. Mas nunca soube que estava na capa de um disco. A minha mãe vai ficar até emocionada. A gente nunca teve foto de quando era menino”, disse Tonho, que nunca ouviu falar em Milton Nascimento, tampouco em Clube da Esquina. “É aquele moço que foi ministro?”, indagou.

A história toda e mais fotos por aqui.


*Nina Becker postou a foto acima no Feice. ❤ Também está pra nascer, também com Marcelo Callado, Gambito Budapeste.

Lucas Santtana & O Deus que devasta mas também cura

Fim de janeiro, começo de fevereiro, conversei com meu novo vizinho Lucas Santtana sobre seu especial disco novo, O Deus Que Devasta Mas Também Cura, para matéria na revista Rolling Stone, edição de março, nas bancas.

Hoje, às 21h, acontece show de lançamento do álbum, com participação de Letieres Leite, no Sesc Vila Mariana. O disco, pode pegar aqui. Logo abaixo, o vídeo da faixa-título, direção de Daniel Lisboa, Diego Lisboa e Matheus Vianna.

Na sequência, todo o papo com Lucas, altas ideias, grandes pensamentos, vários insights e algumas histórias de processo, inspiração, composição e situação do disco novo, o novo da Céu, o álbum do Gui Amabis, amigos músicos, São Paulo, a gringa, amor, amizade, sinceridade & videogame.

O disco novo é um disco “de canções”? Tem algum conceito maior por trás ou alguma ideia que amarra tudo?

Meus discos são sempre discos de canções, só que acabo me divertindo mesmo é em encontrar as camadas de som para vesti-las. Todos os meus discos são assim, e por coincidência todos acabaram tendo alguma coisa que os amarraram. Gosto disso porque ainda gosto da idéia do álbum, como um livro contando uma história em varios capítulos. Os capitulos nao deixam de ser independentes, mas sao parte de um todo. O pessoal até já fica perguntando: qual será o tema no próximo disco? etc. Eu só não quero que isso se torne uma obrigação.

O que amarrou esse disco foi que 80% das canções foram feitas num periodo de dois meses, um tempo depois da minha separação. Fiz umas 15 a 20 músicas nesses dois meses e separei oito delas para o disco. Tive uma necessidade enorme de descrever o que se passava na minha frente, o disco quase não tem situações ficcionais. E as que tem foram inspiradas em fatos reais.

Outra coisa que amarra são as camadas sinfônicas, ora tocadas, ora sampleadas. Foi um reencontro com a minha adolescência, quando ouvia e tocava música clássica. Havia parado de ouvir esse repertório musical, mas de um ano para cá tava ouvindo bastante e acabou contaminando totalmente o disco.

Só aí me toquei como essa informação auditiva na minha adolescência contaminou o modo que produzo música. O que é o repertório de orquestra senão um monte de camadas e mais camadas que se alternam o tempo todo? É um dub de camadas se alternando, só não tem ecos e reverbs, hahahaha.

A faixa título, “O Deus que devasta mas também cura”, saiu em 2011 em uma versão no disco do Gui Amabis, Memórias Luso/Africanas. Foi parte do processo do álbum novo?

Então, o start do disco se deu quando o Gui me deu a base dessa música para fazer a melodia e a letra. Acho a versão dele linda, e minha voz na gravação dele ainda traz muita tristeza. Quando gravei a minha versão já estava numa fase mais de contemplativa, e chamei o Letieres Leite e alguns membros da Orkestra Rumpilezz para não ficar para trás, hahahahaha.

Você gravou onde? Quem produziu? Quais as participações mais legais?

Gravei em vários estúdios em São Paulo, Rio e Bahia. Em São Paulo basicamente no Minduca do Bruno Buarque e na Toca do Calvo do Gui Amabis. Mixei com o Buguinha Dub no Studio Mundo Novo e Masterizei com o Lenza na Yb.

Tem muitas participações, quase todo mundo que tocou eu considero participações especiais. Céu, Curumin, Gui, Rica Amabis, Gilberto Monte, que fez várias coisa maneiras e produziu uma faixa sozinho. Marco Gerez, Mauricio Fleury, Gustavo Ruiz, Bruno Buarque, Guizado, Edy Trombone, os meninos Do Amor: Ricardinho Dias Gomes, Marcelinho Callado e Gustavo Benjão. Lucas Vasconcellos, David Cole. Morotó Slim do Retrofoguetes. Poxa, acho que vou esquecer alguém….

Eu produzi o disco. O Gilberto Monte produziu uma faixa. Em duas faixas o Bruno Buarque co-produziu, em uma o Guizado e em seis o Chico Neves. Mas esse disco eu meti a mão em tudo mesmo. posso dizer que carrreguei debaixo do braço. Nove meses na barriga.

Você chegou há pouco de uma turnê na Europa e Sem Nostalgia foi muito bem recebido lá fora, certo? Alguma influência disso no álbum novo?

Foi muito surpreendente o que está rolando lá. Fomos o melhor disco de 2011 pelo jornal Liberation da França e o 6º melhor disco do ano pela Les Inrockuptibles, a Rolling Stone francesa. Ficamos por 3 meses no top 3 da WMCE, uma associação de rádios em 12 países da europa, tocamos no lendário programa do Gilles Peterson na BBC1, lotamos o Barbican Theatre, enfim, recebemos 5 estrelas em praticamente todas as importantes publicações de música da Europa, foi irado. Em 2012 vamos voltar para colher mais frutos.

Mas não influenciou em nada, quando fui o grosso do disco já tinha sido gravado.

Quando sai oficialmente? Quando rolam os shows? Já tá com banda formada?

Em Março eu acho. Shows a partir de março, abril, vai depender da tour na Europa e EUA também.

A banda de Sampa continua a mesma: Bruno Buarque na bateria, Betão Aguiar no baixo, Caetano Malta na guitarra, Mauricio Fleury nos teclados e vou procurar um músico para saltar os samples. O Bruno fazia isso, mas acho melhor ter alguém só para isso. Já tenho uns nomes na cabeça, vou correr atrás.

A banda do Rio continua a mesma também: Ricardo Dias Gomes no baixo, Gustavo Benjão na guitarra, Marcelo Callado (Do Amor) na bateria, Lucas Vasconcellos (Letuce) no synth e David Cole nos dubs e samples. A da Bahia é Seco Grave no baixo, Junix 11 no synth e guitarra, Mangaio no samples e synth, Robertinho Barreto (Baiana System) na guitarra e Jorge Dubman na bateria.

Você comentou que “o disco quase não tem situações ficcionais”. Não que seus discos anteriores não tivessem também uma certa aura totalmente própria e dentro do seu universo, mas O Deus…, definitivamente, é seu álbum mais pessoal, certo? Em algum momento houve algum receio se expor, falar sobre o mais íntimo, mostrar a alma – ou isso foi alimento criativo?

Sim, sem dúvida. Meus discos e consequentemente as canções dos discos nasciam de uma idéia musical, se adequavam a ela. Nesse as canções vieram primeiro e foram determinantes para eu entender que havia um novo disco. Tudo partiu delas.

Na criação não houve e nem pode haver medo ou receio. No lançamento é que rolou isso, porque nas primeiras entrevistas eu fui muito franco, e é complicado falar das coisas íntimas porque envolvem outras pessoas. Aprendi sobre isso nesse lançamento. Mas ao mesmo tempo acho frio quando você precisa esconder as coisas.

Se você pegar entrevistas mais antigas poderá ver como era interessante a franqueza em falar das suas dificuldades e problemas. Mas não pode mais ser assim porque grande parte do jornalismo foi para esse lado paparazzi, ou seja, a novelinha do assunto passa a ser mais interessante do que o que ela trata.

Ao mesmo tempo, discos de fim-de-relacionamento, se podemos criar essa categoria e agrupar clássicos da sensibilidade sincera, sempre vem com um vigor extra, até mais sexualidade. Mais uma vez, não que seus discos anteriores não tivessem uma sensualidade, mas O Deus… traz uma certa safadeza em primeiro plano, com “Músico”, “Jogos madrugais” (mesmo não sendo sobre isso, mas com suas sugestões), o desejo latente de “Para onde irá essa noite?” etc. Só uma observação, mas queria saber: faz sentido?

Acho que isso é que nem poesia, cada um coloca seu ser pessoal na interpretação.

“Músico” eu gravei porque sabia que “O Deus…” abriria o disco, e como a música tem uma carga dramática muito forte, queria que a segunda música servisse como um raio de sol, uma abertura. E nada melhor que essa letra do Tom Zé, que diz “ligue-se o éden, som e maçã”. Vejo ela mais como um paraíso espiritual do que como um purgatório da sacanagem, hahahaha.

“Jogos Madrugais” eu fiz depois de uma noitada jogando videogame num hotel em BH. Depois de pronta é que percebi que parecia a descrição de uma noitada de sexo e drogas.

Esse disco não é sobre o fim de relacionamento. Ele toca nisso também, mas envolve outras questões sobre a vida após isso.

Muito legal o som encontrado com os Do Amor. Melhor timbre e linha de baixo de todos os tempos no “Para onde irá essa noite?” Você chegou a ensaiar muito com Ricardinho, Marcelo, Benjão, Lucas ou a gravação foi mais no susto? E, aliás, por que eles?

Ricardo Dias Gomes é um grande músico. Temos um entendimento muito fino, fui a primeira pessoa a chamar ele para tocar baixo numa banda. Ele era, e ainda é, pianista. Acho que a combinação do jeito dele tocar baixo com o baixo de luthier que ele tem é uma bomba atômica. Vale resaltar os baixos dele no CD 3 Sessions in a Greenhouse. Ele é genial, sem exageros.

A banda do Rio descrita acima, acrescentando o David Cole, gravou seis músicas do disco (Marcelo, sete). Fizemos alguns ensaios e quando fomos para o estúdio já estava tudo bem adiantado em termos do que cada um faria.

Eu gosto de tocar com eles porque tudo que eles tocam vem com uma sujeirinha do rock. Eles juntos não são uma perfeição de execução, e por isso mesmo acaba tendo essa sujeira boa. São todos muito musicais e criativos e na estrada nos divertimos muuuuuito. Já enfrentamos umas “turnês from hell” que só a brodagem e o bom convívio superam.

“Se pá, ska” é especial, hit total. A inspiração foi São Paulo, é isso? Você escreveu a canção pensando na cidade, nos amigos e papos daqui, nas relações?

Sim, foi o convívio com meus amigos daqui de São Paulo. Eu me sinto muito bem em São Paulo porque 99% dos amigos daqui são músicos ou trabalham nesse universo. A maioria deles tem estúdio, então estar aqui é sempre produtivo, sempre estou bem perto da música de uma maneira produtiva.

Pensei muito nessa solidão de São Paulo, que é algo que está acima de todos, como uma entidade da cidade. Acho que por isso as celebridades não se fazem aqui, em SP todo mundo vira a mesma coisa, uma massa que a cidade recebe e tritura. A cidade chapa todo mundo numa condição existencial solitária. E é o encontro com os amigos que salva todo mundo dessa solidão. sentar na mesa para comer e papear, com isso um olha para o outro e reconhece a sua existência, tirando todos da solidão que nos acompanha da “barriga até o caixão”.

Gosto muito do refrão em inglês que fala que assim como de repente nos damos conta que já somos adultos, as cidades também vão crescendo desordenadamente de uma maneira louca e ela vai se despedindo dos velhos e vendo os novos chegando. Pensei no meu filho, de como daqui a pouco ele vai “ganhar” a cidade com os amigos, redescobri-la, reinventá-la, enquanto nós ficaremos mais velhos e aos poucos cederemos esses espaços para eles. As cidades são esse eterno moto contínuo.

Fiquei impressionado com “Contravento”, no Caravana Sereia Bloom. Música linda, e que achado poético bonito a ideia do som do vento, menino, batendo no rosto na janela. Me fez pensar no poder de uma composição: congelar o tempo, fotografar uma cena, ampliar uma ideia. É uma parceria com o Gui Amabis, foi algo também nascido do disco dele?

Não, ele me chamou para fazer essa música para o disco da Céu. Ele tinha o pedaço da letra que falava da poeira que sobe e rasga a pele etc, ele já veio com essa idéia de estrada por conta do mote do disco. Dai pensei naquele começo que é ao mesmo tempo cinematográfico e mental. De você estar no carro em movimento, vendo a paisagem estática passando, e ao mesmo tempo que seu olho vaga sua cabeça não para de pensar milhões de coisas. E isso também é uma maneira de distrair o tempo, já que muitas vezes a viagem é longa. Também fiquei bem contente com o resultado dessa música. Já é a segunda parceria com o Gui que fica boa.

Também sobre o Caravana, pergunta direta: qual foi a inspiração para “Streets Bloom”? Ela foi composta na mesma época das canções d’O Deus…? Tem um certo ar londrino de “Nine out of ten” do século XXI…

Um pouco depois, fiz sob encomenda da patroa, hahahaha. Esse ar que você falou é porque é um reggae em 3, e isso é raro. Fora “Nine out of ten” só me recordo de “Extra”, de Gil. Como o disco era nessa pegada on the road, pensei numa letra que fosse a Céu voltando para São Paulo e recordando a viagem que fez. A letra descreve isso.

Tínhamos pensado numas descrições piscodélicas da viagem, mas eu preferi falar sobre coisas que são reais e ao mesmo tempo muito loucas. Como aquela boate na Holanda, cuja eletricidade é fornecida pelo impacto das pessoas dançando em cima da pista de dança. Ou sobre novos tijolos produzidos na Amazônia que são feitos a partir dos dejetos da floresta.

Aproveito a conexão londrina para perguntar de onde veio essa ideia de regravar o My Tiger My Timing? De onde você conheceu a banda?

Ouvi o clipe dessa música no URBe e pirei nela. Sempre que pinta uma banda de rock branca usando elemento de música africana eu piro. É uma espécie de vingança pessoal, hahahahaha! Então fiz uma versão para ela e “azeitei” mais o groove, trouxe para os trópicos. A letra da minha versão é meio Donkey Kong, o cara passa por milhões de dificuldades para salvar a princesa da prisão e ganhar seu coração. A princípio ela se chamava “São Joguinho”, pois parecia uma reza, como o Jorge Ben fez em “Meu Glorioso São Cristovão”. A Anna Dantes que deu esse nome. Mas quando tocamos a primeira vez ao vivo um cara disse: “adorei aquela música do ‘Paladino e seu cavalo altar'”. Ai não tive dúvida que deveria se chamar assim.

Concluindo, pensando em “Paladino” e “Jogos madrugais”, preciso saber: qual o videogame e qual o(s) jogo(s) que tanto te enfeitiçaram e inspiraram nesses tempos?

Hahaha, o “Paladino” acabei de descrever. Em “Jogos” tenho até vergonha de dizer, mas foi uma versão para MAC do clássico Space Invader. :p

Destaques em 2011

Em clima de retrospectiva deste 2011 que acaba, o pessoal do UOL selecionou dez listas de discos que foram destaque pelo ano. Ao lado de Fernanda Mena, Jotabê Medeiros, Lúcio Ribeiro, Fernando Kaida, Cláudia Assef, Antonio Farinacci, Sergio Martins, Mariana Tramontina e Pablo Miyazawa, escolhi dez álbuns que pintaram muito bem em 2011 e escrevi breve comentário de apresentação sobre, em especial, o de Criolo.

Em olhada rápida logo abaixo e todo o resto por aqui.

“Nó na Orelha” Criolo

Uma química especial aconteceu quando Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral começaram a produzir o álbum “Nó na Orelha”, do rapper Criolo. Com representativa história construída no hip-hop, foi uma surpresa sua revelação como compositor de canções e talento bruto como cantor. Entre arranjos de sopros e cordas, som de banda com piano-baixo-bateria e participações de músicos como Thiago França, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, o disco passeia por bolero, dub, soul, afrobeat, samba – e, claro, rap. As letras fortes, cheias de cenas da cidade e dialetos suburbanos, incorporam o discurso do hip-hop – com intepretação intensa, mas amorosa -, em faixas com identidades próprias, em algum lugar entre Sabotage e Adoniran, Wu-Tang e Fela. Caetano Veloso percebeu e quis cantar junto, Chico Buarque atentou e homenageou no show, a MTV deu o prêmio de disco do ano, jornais, revistas, blogs e redes sociais gastaram o assunto. Lançado em LP, CD e de graça na internet, resultando em série de apresentações lotadas e provando fazer jus ao título, “Nó na Orelha” foi o álbum de música brasileira que mais chamou a atenção em 2011.

se eu tenho tanto a perder eu perco é o medo

O que se quer“, forrozinho simpático, parceria de Marisa Monte com Rodrigo Amarante, é belo momento do recém-lançado disco novo da cantora, com ele cantando junto e tocando quase tudo. Faixa-a-faixa de todo o álbum você lê por aqui, e logo acima no play o dueto, sobre o qual ela contou mais por aqui e trecho abaixo:

A música que eu me lembro de ter feito durante o processo foi consequência da minha passagem por Los Angeles, quando encontrei o Rodrigo Amarante. Eu nunca tinha feito nada com ele, mas existia uma vontade mútua. Um dia a gente se encontrou no estúdio porque a gente gravou uma música para o último Red Hot + Rio, “Nu com a minha música”, de Caetano Veloso e Devendra Banhart. Durante esse tempo em que a gente estava no estúdio, pintou a ideia de uma música. Ela já veio com algumas palavras, uma coisa que a gente fez junto na hora, já com alguns pedacinhos de letra. Depois, ele continuou sozinho. Quando ele veio ao Rio, ele trouxe o que ele tinha feito. Aí, demos aquela arredondada e eu achei que ela tinha a ver com o resto do disco todo. Ela fala sobre saber o que se quer e sobre pagar o preço do que se quer, mesmo parecendo loucura para todo mundo em volta. A música é na primeira pessoa e ela diz: “Vá, pode falar, pode escrever, eu vou me entregar”. É sobre o reconhecimento e a conquista do desejo.

Esperanza Spalding & Milton Nascimento

Conheci Esperanza Spalding em janeiro de 2006, quando ela tinha 21 anos, um recém-gravado e independente álbum de estreia e vinha pela primeira vez ao Brasil, se apresentar no Sesc Pompeia. Então professora, uma das mais jovens da história da escola, já era dessas artistas que se espalham como uma coisa secreta e especial entre os ouvintes, soma constante. Na época, já me contou que era fã de Edu Lobo e Pixinguinha, o que escrevi na época na Ilustrada. Essa semana, a encontrei em um hotel de São Paulo para conversar sobre seu encontro com Milton Nascimento, em show hoje no Rock in Rio e, oxalá, um álbum juntos. Na Ilustrada de hoje ou, bate papo completo, abaixo.

Esperanza Spalding quer disco com Milton

Esperanza Spalding era uma jovem estudante de contrabaixo da famosa Berklee College of Music quando conheceu a música de Milton Nascimento. Dali até tornar-se uma das mais jovens professoras da mesma Berklee, encontrar reconhecimento irrestrito como ótima instrumentista e afinal ganhar o Grammy de Artista Revelação em 2011, a música de Milton continuou com ela.

Regravou “Ponta de areia”, convidou Milton para cantar em seu disco mais recente, tornou-se amiga próxima e veio passar o último ano novo com ele. Agora, na tarde deste sábado, dentro da programação do Rock in Rio, o encontro da música dos dois se materializa em apresentação em dupla no palco Sunset, às 16h45.

Em conversa em São Paulo, antes de partir para a Cidade do Rock, a instrumentista e cantora de 26 anos, simpática e elegante com um enorme penteado afro, contou sobre sua relação com a música brasileira e a música de Milton e os planos de continuarem fazendo música juntos.

Conversamos a primeira vez há cinco anos, quando veio ao Brasil pela primeira vez.

Que legal!

Lembro que ali você já comentou que amava música brasileira, citou até Pixinguinha.

Tinha esquecido. É interessante, tanta coisa aparece, eu até esqueço o que gostava três anos atrás. Tanta coisa aconteceu desde então.

Você se lembra de quando tomou consciência da música brasileira como uma coisa única?

Honestamente, a primeira vez que ouvi não sabia o que era, não me importava. Acho que era um disco do Stan Getz. Definitivamente me lembro de ter uma fita com várias coisas gravadas e uma delas era João Gilberto cantando, e isso foi, “uau”. Mas eu nem sabia de onde ele era. Digo, eu sabia onde ficava o Brasil no mapa, mas não tinha familiaridade com a música. Esse foi o primeiro impacto, mas não como algo a estudar ou seguir. Era uma canção incrível que eu ficava ouvindo muito.

Depois, quando cheguei na Berklee, conheci muita música nova pelas pessoas. Você sabe, é o que se faz: “ouve isso, ouve isso”. Então ouvi “Native Dancer”, de Wayne Shorter, foi quando ouvi o Milton pela primeira vez. Embora acho que eu já tivesse ouvido Hermeto Pascoal antes disso, há muitos estudantes de sua música.

Alguém tinha uma coleção de CDs com músicas de carnaval de todo o Brasil, todas as diferentes tradições de carnaval. Como aquela com o guarda-chuva, frevo. Muitos sons diferentes. Ouvi também Dorival Caymmi. Alguém me deu um CD com versões de músicas do Dorival Caymmi, foi quando conheci Caetano Veloso. E talvez Joyce. Rosa Passos também ouvi muito.

Não houve um evento específico incrível. O evento de que me lembro mais distintamente foi definitivamente ouvir “Native Dancer” e ouvir Milton. Depois disso foi apenas pessoas me mostrando coisas legais: “se você gosta disso, precisa ouvir isso”, e aí você vai descobrindo outras coisas.

Sabe dizer o que na música do Milton saltou ao seu ouvido?

Acho que não conseguiria. Pessoas assim são algo tão maior que os elementos que você pode analisar com seu intelecto. Somente alguém muito mais eloquente e poético que eu poderia dizer. De tudo que eu gosto na música dele, se eu dissesse “isso é o que eu gosto” e tirasse e analisasse, não seria a razão. É ele. Ele impacta. Ele é a força de vida de sua música. Não sei explicar isso, mas ele é incrível.

Tenho o exemplo perfeito: Maria Gadú estava em Nova York e me chamou pra tocar baixo em seu disco. Certo. Acho que ela é incrível, por isso eu disse sim. Então, o cara que estava produzindo me mandou as demos. E quando eu ouvi, fiquei meio “oh…” Não gostei. Não gostei da música. Aí fui pro estúdio me sentindo meio mal, porque tinha prometido tocar e não gostava da música. No momento em que ela começou a tocar e cantar, me apaixonei totalmente por tudo. Não é a canção – não é a letra ou nada. Quando ela canta, a letra é incrível, o som do violão é incrível, a melodia é incrível, o groove é incrível. Mas se não for ela cantando, é vazio. Bem, no caso da música do Milton, mesmo se ouvisse uma demo acho que você ficaria impressionado. Mas é ele.

E todas as outras pessoas também. Hermeto Pascoal também. Quando ouço pessoas fazendo covers de suas músicas é desafiador, então é legal, é impressionante que ele tenha escrito aquilo. Mas quando ele toca com a banda dele é totalmente diferente. Como com todos os grandes. Como Wayne Shorter e o Weather Report. É a força de vida deles, é a experiência deles, é o tom de suas vozes, do que viveram e pensaram. É de humano a humano. Sabe?

Claro. Pensei nisso ouvindo as vozes de vocês juntas em “Apple blossom”.

Uau. Ele é incrível.

Sabia que ele é originalmente contrabaixista?

Eu sei, ele me contou. Passei a ficar nervosa [de tocar perto dele].

Você já viu ele tocando contrabaixo?

Ainda não. Ele não toca! Eu fico passando o baixo pra ele e ele, “não, não”. Um dia gostaria de ouvir ele tocando. É engraçado, agora sabendo disso comecei a notar quanto as linhas baixo são importantes nas suas composições. Estávamos ensaiando esses últimos dias e quando eu erro alguma linha de baixo ele percebe na hora. Ele fica muito em contato com o baixo, dá pra sentir essa conexão.

Como tem sido a experiência de tocarem juntos?

Passei o último ano novo na casa do Milton – aliás eu fui lá com um amigo que parece um pouco com você (risos) – e lá nós tocamos muito, mas só pela diversão. Essa é a primeira vez que preparamos música para um show.

Já sabem que músicas vão cantar?

Sim. Mas não posso te contar, tem que ser surpresa. Vamos fazer músicas deles, algumas canções minhas, e de alguns outros compositores. Ele vai tocar violão e também só cantar em alguns momentos. É claro que as músicas soam diferentes, porque não estamos acostumados a tocar sua música. Mas desde o último ensaio a música está realmente viva. Ao vivo qualquer coisa pode acontecer, mas vai ser incrível.

Ouvi dizer que vocês farão um disco juntos.

Gosto desse boato. Vamos ver.

Então a possibilidade existe.

Bem, nós conversamos sobre a ideia de fazer um projeto juntos, mas… Não, não tem “mas”, nós conversamos, é isso. A coisa mais sábia a fazer é tocar, ver como vai ser. Nós definitivamente somos amigos, estamos em contato. Virei passar o próximo ano novo com ele novamente e trarei algumas canções que escrevi, veremos. Não quero que o boato se torne forte demais, porque se não acontecer vai ser decepcionante. Mas conversamos sobre isso, espero que aconteça. Seria mais profundo que um sonho tornado realidade.

Cavaleiro Selvagem Aqui Te Sigo

O terceiro e ótimo álbum de Mariana Aydar, que está sendo lançado agora, é afromântrico. Entre a Salvador africana de Letieres Leite e Tiganá, canto pra natureza com Emicida, forró e carimbó de radinho entre Amelinha e Edson Duarte, com a guitarra de Gui Held e a grande beleza de Dominguinhos, encontra um resultado muito próprio, universo pop pessoal e passional. Sobre o disco, para Mariana, escrevi o que antigamente talvez se configurasse como texto de contracapa, apresentação hoje em dia comumente chamada de press release, ensaio abaixo.

MARIANA AYDAR
CAVALEIRO SELVAGEM AQUI TE SIGO

Uma produção Universal Music dirigida por Letieres Leite e Duani Martins.

O que te guia? Inspiração, medo ou vontade, sempre há o que nos move, sempre há o que nos surge para indicar caminhos ou possibilidades, como se por além de nós, essencialmente íntimo.

No caso de Mariana Aydar, guiada pela intuição, as vontades essenciais para seu terceiro disco eram várias, que surgiam e se somavam em realizações: gravar ao vivo, buscar origens e ao mesmo tempo olhar pra frente, aprofundar no lado rítmico afrobrasileiro, trazer pra perto uma certa tradição nordestina sem clichês, montar a melhor banda do mundo. O resultado, Cavaleiro Selvagem Aqui Te Sigo, é o que pode ser chamado seu álbum mais pessoal, amplo de ideias e bem realizado em sons.

Como acontece quando se encontram forças análogas e complementares, com suas próprias fundações e ricas em interpretações, a soma das partes revelou algo novo, único em si. O Cavaleiro Selvagem seguido já desde o título surge como uma imagem protetora através da metafórica floresta de emaranhados de universos concebidos.

Os pontos de apoio do disco – abrindo, fechando, no centro, pulsando – são as composições de Mariana, que despertaram sua busca e mostraram sua visão, unindo canções diferentes mas iguais, encontrando o diálogo entre Salvador e África, psicodelia e pop, revelando canções novas mesmo se antigas, um tanto de compositora e um tanto de intérprete, juntas. De Zé Ramalho a Thalma de Freitas, de fado a vanguarda paulistana, de Caetano em inglês às próprias composições misteriosas, seguindo o Cavaleiro e de pé no chão.

Letieres Leite, maestro, compositor e arranjador da muito especial Orkestra Rumpilezz, brilhante jazz afrobaiano de atabaques e sopros, se fez presente durante o processo de criação do disco como uma figura-mestre, afinal produtor do álbum, ao lado do parceiro de Mariana desde seu primeiro disco, o sensível e incansável baterista e multi-instrumentista Duani.

Com a banda-base já esquentando desde a série de shows ao vivo “1, 2, 3 Testando”, feita no fim de 2010 para afinar repertório e sonoridades, o álbum foi gravado de primeiros takes, todo mundo tocando junto, banda afiada e arranjos ricos de detalhes.

Além de Mariana brincando com as vozes e Letieres como guru musical, o som quente e cheio de dinâmicas e especiais vem de Guilherme Held nas personalíssimas guitarras, Robinho no baixo, Guilherme Ribeiro na sanfona e teclado mais o groove de bateria de Duani Martins, completados com o percussionista Gustavo Di Dalva, direto da Bahia para as gravações. Mariana, ocupando os espaços musicais com grandes inventividades e liberdades vocais, segurança de interpretação e visão clara do destino.

A Saga do Cavaleiro”, vinheta, clima e sugestão de abertura, já te coloca na viagem, dentro do percurso. Abrindo os caminhos na pegada, “Solitude” é parceria da cantora com as amigas Jwala e Luisa Maita, sem medo de amar nem de mar, a escolha de estar só mas bem acompanhado, guiado pelo cavaleiro que é você mesmo, solitude e não solidão. Como em “Não foi em vão”, composição de Thalma de Freitas gravada no disco da Orquestra Imperial, aqui transformada em jazz-samba com arranjo de madeiras e trompa, a interpretação de canto rasgado dando novos tons à canção sobre autonomia emocional.

Grande afirmação artística de Mariana e também dos compositores Dante Ozzetti e Luiz Tatit, “Passionais” segue a inspiração da cantora de encontrar grandes músicas para engrandecê-las um pouco mais. Desde que a cantava há dez anos, na turnê do disco Ultrapássaro, de Dante, Mariana vem cultivando intimidade com a canção. Grande composição, grande letra, grande interpretação da cantora – se não foi maior ou melhor, foi o maior e melhor que fizemos. É o preço de ser passional. (Mas não dói não.)

Surpreendendo e renovando sua própria tradição na vanguarda paulistana – seu pai é Mario Manga, do Premê -, Mariana atualiza o cult e desabrocha uma perfeita canção pop e, de certa maneira, também pratica o inverso, deixando levemente à vanguardaVai vadiar”, de Monarco e Ratinho, antigo sucesso de Zeca Pagodinho e já cantada por Mariana há anos em shows, recriado para além do samba. Também como na primeira gravação da cantora em inglês, “Nine out of ten”, já tido como o primeiro reggae brasileiro, gravado pelo autor Caetano Veloso em 1972. Por todo o álbum estilos não se definem e as barreiras aparecem criativa e naturalmente borradas entre levadas afro, pegada rock, carimbó e forró de radinho, axé music dos anos 90 e o que mais se ouvir nesse universo de ritmos poderosos.

Floresta” é o coração do disco, em muitos sentidos. Auge artístico, poética e inspiradora, com participação sublime da voz do cantor e compositor baiano Tiganá Santana, também parceiro de Mariana e Guilherme Held na composição. Logo depois de se dizer alive e viva, outro alerta para a vida, vamos preservar a flor. Com harmonização vocal, melodia levada no violoncelo e percussão passeando por timbres, a faixa traz charme de lado B de disco brasileiro dos anos 70 e um certo espírito à Milton Nascimento, clima de canção do sal, da terra, lembranças do álbum experimental/existencial Krishnanda, do percussionista Pedro Santos, 1968.

Talvez a maior ousadia no repertório – e certamente uma de suas grandes realizações -, é a recriação de “Galope rasante”, de Zé Ramalho, hit e pérola de Amelinha de 1979. Temperando o groove seco do sertão com flerte afrobeat e nova parte especial com riff vocal acentuando o lado rítmico, é Mariana moça e anciã.

O fado sem pátria “Porto”, torto, perdido no mundo, composição climática e inteligente de Romulo Fróes e Nuno Ramos, é oportunidade para Mariana mostrar interpretação entregue, lírica. De Lisboa a Salvador, da fronteira a São José do Rio Preto, um disco não sem lugar, mas ocupando seu próprio espaço.

A paixão que levou Mariana a criar o projeto de um documentário sobre Domiguinhos é musical, é a mesma que a leva a chamá-lo para uma lindíssima participação na sanfona no momento mais leve e delicado do disco, em “Preciso do teu sorriso”, de João Silva, sucesso do Trio Virgulino, reinventado aqui puro amor de partir o coração.

O hit de primeira audição “O homem da perna de pau”, de Edson Duarte, é clássico imediato e infalível do disco, misturando com senso de humor e beleza carimbó, brega, forró em um som totalmente contemporâneo, pra não dizer mesmo moderno. Mesmo lendo tudo isso, lhe asseguro, o som é uma surpresa de agrado geral.

Anunciada por naipe de metais, a canção “Cavaleiro selvagem” nasceu como um canto na cabeça de Mariana, que para desenvolvê-lo só pensou “o Emicida vai terminar essa parada” e foi na hora. Ligou, no mesmo dia se encontraram e o jovem rapper incorporou e compôs a segunda parte como se fosse a própria Mariana criando melodias. Ambos buscando o equilíbrio do Cavaleiro como um Deus geral, a natureza, a raiz, o elemento terra, o vento sereno trazendo o sol, uma figa levando todo o mal. O fato de que chovia durante as gravações do disco pode não trazer nenhum significado concreto, mas certamente conspirou com o clima.

O cavaleiro passa, perpassa, atravessa o álbum – da faixa de abertura aos galopes finais da última canção, “Vinheta da alegria”, também de Mariana – como se todas as coisas não acabassem, mas se renovassem constantemente voltando às suas origens. Ideia que se conecta com o conceito de fundamento das coisas da Ancestralidade, tão ligado aos padrões percussivos afrobaianos, que dão um espírito particularmente forte ao disco.

A Saga do Cavaleiro é sugerir e guiar, passar e inspirar. Mariana ouviu e criou seu disco mais artesanal, cheio de mistérios, afromântrico. Não tem manual, não é uma homenagem a tradições, cada um de nós tem seu próprio Cavaleiro Selvagem. É uma busca a algo maior pela música, pela expressão, pela soma. O caminho é pessoal a cada participante e ouvinte e se é universal é pelo ímpeto artístico. O coração sente e derrama vida. E fim.

Ronaldo Evangelista, agosto de 2011.