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João Gilberto disco-a-disco

Onze álbuns gravados em estúdio e metade disso ao vivo – cinco e meio. Menos de 17 discos de registro do som que tanto impacto causa na música há 50 anos: a voz e violão de João Gilberto. Mais de cinco décadas depois, o assombro e a influência que a arte de João Gilberto ainda inspira são os mesmos de quando lançou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1959. João Gilberto já sabia tudo: constantemente reinventando e evoluindo suas canções e interpretações, toda sua obra é lida como a evolução de uma sonoridade única, elaboradamente simples e infinitamente sofisticada. Logo abaixo (originalmente para o Uol em 2011, nos 80 anos de João), sua discografia comentada, do primeiro disco, lançado em 1959, até o mais recente, de 2004.


“Chega de Saudade” (1959)

Depois de participar do disco “Canção do Amor Demais” (de Elizeth Cardoso) e lançar dois 78 rotações em 1958, João Gilberto chegou à modernidade dos LPs ajudando a inventá-la. A voz íntima do ouvido, o som de violão absolutamente claro, a abordagem ao mesmo tempo casual e lapidada: eram muitos elementos novos que somavam àquele núcleo de criação exemplar. Além da remodernização de antigos sambas da década de 40 – um Dorival Caymmi, um Marino Pinto, dois Ary Barrosos -, contribui muito com o sabor de novidade a presença do produtor Tom Jobim, com três canções, seus pianos discretos e seus arranjos cheios de pequenos detalhes nas cordas e sopros, como contracantos de João.

Grande momento: “Morena boca de ouro”, releitura de um sucesso de 1941 de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas, aqui com o piano de Tom Jobim e a economia do arranjo impressionantes até hoje.


“O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960)

O segundo LP de João Gilberto já começava ousado na capa, em preto-e-branco solarizado, criada por Cesar Villela, que em breve faria as famosas capas da gravadora Elenco. Gravado pouco mais de seis meses depois do primeiro disco, e novamente com direção musical de Tom Jobim, o álbum trazia no repertório seis novas canções do produtor, mais um Caymmi e um antigo sucesso nunca gravado do tempo de conjuntos vocais: “O Pato”.

Grande momento: Abrindo com vocalises que reinventam as harmonias da versão original do conjunto vocal Anjos do Inferno, de 1945, “Doralice”, de Caymmi, ganha versão definitiva com João Gilberto, em nada além de um minuto e 29 segundos. De acompanhamento, além de seu violão e leve percussão, a modernidade do piano delicado e cristalino de Tom Jobim e breves comentários da flauta no contraponto.


“João Gilberto” (1961)

No mesmo fôlego, um ano depois foi gravado o terceiro LP, homônimo, de João Gilberto. Em algumas faixas, acompanhado do conjunto do pianista Walter Wanderley, todo o resto novamente com Tom. Além de três novas do produtor, o repertório continua lembrando antigos sambas dos anos 40, desta vez com dois Caymmis, um Geraldo Pereira e um Bide/Marçal.

Grande momento: “A primeira vez”, samba de Bide e Marçal cantado por Orlando Silva em 1939, surge em versão quase invertida: o volume do original é traduzido em arranjo quase solo de voz-e-violão, apenas com o piano ocasional de Tom.


“Getz/Gilberto” (1964)

E então, o mundo descobriu. Gravado em Nova York ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz (e com Tom ao piano), o álbum foi lançado pela gravadora de jazz Verve e se tornou famoso em todo o planeta, ganhando cinco prêmios Grammy. Cantada pela mulher de João, Astrud, “Girl from Ipanema” saiu em single (sem a voz de João) e vendeu mais de um milhão de cópias – a canção se tornou uma das mais regravadas da história.

Grande momento: O máximo de sublime de João em disco se revela em sua interpretação de “Pra machucar meu coração”, do então recém-falecido Ary Barroso, que João muito admirava e havia acabado de conhecer. Perfeição no piano de Tom, sax de Getz, baixo e bateria de Tião Neto e Milton Banana, e João, no seu mais suave e musical.


“Getz/Gilberto II” (1964)

O primeiro disco ao vivo (ou meio) de João, gravado no Carnegie Hall em outubro de 1964, lado B de um LP com Stan Getz do outro. Na versão em CD, cinco faixas bônus trazem João e Getz juntos, com Astrud.

Grande momento: Apesar de não manter a aura de magia do encontro em estúdio, “Você e eu” ao vivo é mais um interessante encontro do violão ritmado do João com o sax jazzístico de Getz e a voz vaporosa de Astrud.


“En Mexico” (1970)

Gravado durante temporada de João Gilberto no México, como já fica claro no título, o álbum só foi gravado seis anos depois do último, e desta vez com arranjos de Oscar Castro Neves. Entre as novidades do repertório, três boleros, dois Jobins, duas autorais sem letra e uma composição de seu amigo João Donato gravada dois anos antes por Sergio Mendes: “The Frog”.

Grande momento: João canta tão próximo do microfone que sua respiração funde-se com sua voz com inigualável efeito de intimidade com o ouvinte em “Astronauta” (também conhecida como “Samba da pergunta”), só com seu violão, piano pontuando e etéreas cordas ao fundo.


“João Gilberto” (1973)

O auge do minimalismo zen de João, gravado novamente em Nova York. Desta vez acompanhado apenas do percussionista Sonny Carr e, em uma faixa, da voz de sua então nova esposa, Miúcha. Além de um Jobim, três faixas sem letra e mais alguns sambas antigos, a grande novidade são canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Grande momento: É irresistível acompanhar as harmonias vocais que João cria em contracanto com Miúcha em “Isaura”, sua versão do samba de 1945 de Francisco Alves. João, virtuose dos detalhes.


“Best of Two Worlds” (1976)

Com repertório baseado no chamado “álbum branco”, de três anos antes, traz novo encontro com Stan Getz, mais de dez anos depois do “Getz/Gilberto” original. Duas faixas são cantadas solo por Miúcha e uma novidade do repertório é “Retrato em Branco e Preto”, parceria do irmão da noiva, Chico Buarque, com Tom Jobim.

Grande momento: Cantada com serenidade e emoção por João, “Ligia” é uma novidade de Tom Jobim até hoje: João canta a primeira versão da letra, diferente da que depois ficou mais conhecida, com retoques de Chico Buarque. Getz aparece com dois solos dobrados, sobrepostos com melodias diferentes.

(Bônus momento: “É preciso perdoar“.)


“Amoroso” (1977)

Trazendo composições em inglês, italiano e espanhol e arranjos de orquestra do alemão Claus Ogerman – que havia cuidado da orquestra nos discos solo de Tom Jobim -, “Amoroso” foi desde seu lançamento recebido como momento de gala para João e é até hoje um de seus álbuns mais conceituados entre jazzistas.

Grande momento: Não é nem preciso entender a letra em italiano de “Estate” para ficar tocado com sua sensibilidade. Lendo-se, então, o “verão que criou nosso amor” e agora é um “legado de dor”, emocionante.


“João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” (1980)

Segundo disco ao vivo de João, de um especial de TV da Rede Globo com plateia, orquestra e participações de sua filha Bebel Gilberto (então com 14 anos) e Rita Lee. Johnny Alf e Lamartine Babo são surpresas do repertório.

Grande momento: Antiga marchinha de 1939 de Lamartine Babo, cantada por Mário Reis em dueto com Mariah, “Jou Jou Balangandãs” vira pura bossa com a voz da tropicalista Rita Lee, interpretações em pura doçura.


“Brasil” (1981)

Gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia: o violão de João, comentários dramáticos nas cordas e percussões e as quatro vozes se fundindo – Bethânia canta suave como nunca antes ou depois. Quase um disco conceitual sobre a Bahia, com versões de Caymmi, Ary Barroso e, novidade, Os Tincoãs.

Grande momento: Versão do standard americano “All of me” pelo letrista Haroldo Barbosa, “Disse alguém” é uma pérola, com João fazendo uma adaptação jazzística da sua batida ao violão, pequenas alterações na melodia e toda uma nova cor nas imagens em português.


“Ao Vivo em Montreux” (1986)

Terceiro disco ao vivo e um dos melhores momentos de João no palco, foi gravado – todo de voz e violão – no famoso festival de jazz suíço em 1985 e lançado em LP duplo, depois CD simples com duas músicas a menos.

Grande momento: O antigo sucesso de 1948 de Haroldo Barbosa na voz d’Os Cariocas, “Adeus América”, ganha todo um novo contexto na voz mântrica de João Gilberto, que tanto tempo morou nos Estados Unidos e havia retornado ao Brasil há pouco.


“João” (1991)

Com arranjos de cordas do americano Clare Fischer sobre a base de violão e voz de João, o disco não atinge os mesmos níveis de Amoroso, mas tem ótimo repertório, com Noel Rosa, Cole Porter, bolero, chanson.

Grande momento: João parece ter total controle sobre como fazer o tempo parar, andar para frente ou para trás em seus ritmos de violão e andamentos vocais. Em “Eu sambo mesmo”, de Janet de Almeida, cantada pelos Anjos do Inferno em 1946, o sublime é atingido já nos primeiros segundos.


“Eu Sei Que Vou Te Amar” (1994)

O quarto disco ao vivo de João e o mais sem graça, com mixagem imperfeita, edição brusca e repertório sem surpresas. “Você não sabe amar” é boa novidade.

Grande momento: “Lá vem a baiana”, de Caymmi, sempre perfeito na voz de João.


“Live at Umbria Jazz Fest” (1996/2002)

Quinto disco ao vivo de João, gravado na Itália em 1996 e lançado em CD em 2002. Mais atualizações de canções de todas as fases da carreira de João.

Grande momento: “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, tão conhecida e sempre tão nova com João.


“Voz e Violão” (1999)

Produzido por Caetano Veloso, foi o último de estúdio gravado por João e o único inteiramente só de voz e violão. O repertório recupera sambas antigos de Bororó, Herivelto Martins, uma raridade de Tom Jobim, dois Caetanos e novas lapidações de “Chega de saudade” e “Desafinado”, cada vez mais sintéticas.

Grande momento: Dessa vez João Gilberto não foi tão longe, apenas 1980, para encontrar uma maravilha. “Você vai ver” foi lançada no álbum Terra Brasilis, de Tom Jobim, como uma elegante canção de fim de amor, aqui transformada em pura candura.


“In Tokyo” (2004)

País que cultua João Gilberto talvez até mais que o Brasil e recebe visitas frequentes para turnês, o Japão rendeu o mais recente disco ao vivo de João, sexto de sua carreira. Gravado em 2004, João tinha então 73 anos e faz ótima performance, tranquila e depurada.

Grande momento: Aracy de Almeida cantava “Louco” de Wilson Batista em 1946, e desde os anos 50 João a traz em seu repertório, apesar de nunca tê-la gravada em estúdio. Canta ao vivo a história do louco que chora e anda pelas ruas, transformando-se até num vagabundo.

Krishnanda 2012

Antes mesmo de saber que o álbum estava sendo relançado em vinil pela Polysom, estava conversando com meu chapa Ricardo Alexandre, diretor de redação da revista Trip, sobre um perfil de Pedro Santos e seu iluminado disco Krishnanda, pérola de 1968. Foi um timing feliz, depois de alguns meses de pesquisas, entrevistas e redação, perceber que a publicação da revista seria no mesmo mês em que os LPs, com som remasterizado e prensagem zero quilômetro, chegariam às lojas. Não precisamos mais desse papo de disco esquecido: Pedro Santos, Sorongo, anda mais vivo do que nunca. Os sons, em qualquer lugar que se vendam vinis novos e bons. Parte da história, em humilde contribuição minha, este mês nas bancas, pelo site da Trip e a íntegra pré-edição logo abaixo.

MÚSICA E ESPIRITUALIDADE NA ESCALA DA VIDA

De onde viemos e o que ainda somos na escala da vida? A capa do LP Krishnanda, lançado em 1968 pelo percussionista e compositor Pedro Santos, tenta escalonar. Em uma colagem circular, espécie de mapa evolutivo, aparecem minérios, amebas, flores aquáticas, moluscos, peixes, anfíbios, larvas, insetos, aves e feras, ao redor de um grande gorila e um pequeno homo ancestral. Nas pontas, as mãos de Deus e do primeiro homem, detalhe recortado do afresco A Criação de Adão, de Michelangelo, da Capela Sistina, talvez simbolizando toda a vida que surge entre aquele quase toque de mãos.

Não é uma capa comum, como nada no disco em si e em seu autor era comum. Pedro Santos, também conhecido pelo nome do principal ritmo que inventou, Sorongo, era especial. Além de músico inventivo e grande ritmista que tocou com Hermeto Pascoal, Orquestra Tabajara, Maria Bethânia, Baden Powell, Clara Nunes, Jards Macalé e tantos outros, Sorongo era altamente espiritual. Presente neste mundo entre 1919 e 1993, expressava grandes pensamentos através de músicas, letras, escritos, desenhos, conversas. Comumente lembrado como “filósofo” por muitos que com ele conviveram, Pedro Santos criou obras muito além de qualquer escala evolutiva da música brasileira.

“SURGIR É SURGIR, MULTIPLICAR É FLORIR”
Hoje, quase 20 anos depois de sua partida e mais de 40 da gravação do álbum Krishnanda, seu pensamento musical e espiritual encontra ressonância renovada. O produtor Kassin, que lembra ter descoberto o disco em meados dos anos 90, comenta: “Pedro é um simbolo do experimentalismo brasileiro, um revolucionário. Acho quase inacreditável que ele tenha conseguido realizar esse disco.” A cantora Mariana Aydar, que costumava abrir seus shows interpretando solo “Um só”, de Pedro Santos, conta que fica sempre emocionada com a música de Sorongo. “É de uma profundidade ímpar, me leva a lugares muito nobres onde poucas músicas conseguem chegar”, explica. “Uma mistura de plenitude e medo.”

Pupillo, baterista da Nação Zumbi e do grupo Almaz, recorda ouvir Krishnanda pela primeira vez em um ensaio. “Foi um divisor de águas pra mim, pois Pedro Santos mostra nesse disco que um grande ritimista, além de pesquisar novos timbres e texturas, poderia criar melodias maravilhosas e mexer com palavras que complementam os temas com enorme maestria. A partir daí, me senti na obrigação de divulgar o trabalho desse grande artista para qualquer amigo músico que eu encontrasse, inclusive sugerindo acrescentar ‘Água viva’ ao repertório do show do projeto Seu Jorge e Almaz, que faria duas grandes turnês pelos Estados unidos e Europa.”

Em seu álbum de estreia, de 2011, a big band paulista de grooves afrobrasileiros Bixiga 70 regravou “Desengano da vista” de Sorongo. “O Pedro Santos tinha a capacidade de compor um tipo de canção que tem a ver com a poesia oriental, ideograma”, enxerga Mauricio Fleury, pianista do conjunto. “Ele escrevia músicas que parecem mandalas, que quando você olha de todos os lados é como se estivesse pra cima. Como fractais ou aquela famosa representação do yin-yang, uma geometria perfeita.” O cantor Ed Motta e o DJ Nuts, conhecidos garimpeiros de pérolas raras brasileiras, são outras figuras conhecidas por louvar o disco. Cereja do bolo, a fábrica de vinis e selo Polysom está relançando o disco em vinil de 180 gramas com remasterização a partir das fitas master originais. A gravadora SonyBMG deve também lançar o álbum em CD.

“VOCÊ É VOCÊ PRA ONDE FOR”
Quando Getúlio Vargas instaurou o decreto 10.358 em 31 de agosto de 1942, estava declarado o estado de guerra em todo o território nacional: nos tornávamos Aliados combatendo o Eixo. Entre julho de 1944 e fevereiro de 1945, foram enviados à Itália pela Força Expedicionária Brasileira mais de 25 mil soldados – e Pedro Santos estava entre os convocados. Pandeirista de adolescência, durante a Guerra continuava ligado à música, integrando a banda dos pracinhas tocando percussão.

Finda a guerra (que lhe deixou “emocionalmente abalado”, contou sua viúva), de volta ao Rio de Janeiro, não pôde fazer diferente: entendeu definitivamente que a música era o seu caminho. Trabalhando como porteiro de rádio, passou a conhecer importantes figuras e a elas mostrar seu toque e suas composições. Pela década de 50, viu gravados seus primeiros temas, os baiões “Marrocos”, “Recordando o Líbano” e “Dança da naja” (já mostrando influências de música africana e oriental) por acordeonistas como Mário Mascarenhas, Orlando Silveira e Manoel Macedo, além da voz de Michel Daud, então conhecido como “o cantor das 1001 noites”. Além disso, em pouco tempo estava tocando com músicos como Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho e a principal formação instrumental de seu tempo, a Orquestra Tabajara de Severino Araújo.

Em 1960, pela gravadora Continental, o compacto duplo Sorongo Is Sensational, de Severino Araújo e Sua Orquestra, explicava que no Dicionário do Folclore Brasileiro de Luiz da Câmara Cascudo, encontramos “Sorongo” como “dança africana que os escravos trouxeram para o Brasil” e contava: “Pedro Santos, ritmista da Orquestra Tabajara, há seis anos idealizou um novo ritmo. Passou tempo burilando o referido ritmo enquanto procurava uma designação para ele. Depois de muita pesquisa, encontrou a definição e utilizou o nome “Sorongo”, porque, na verdade, o seu ritmo é uma variação do samba, que por sua vez é oriundo do batuque.”

Elza Soares, Angela Maria, Baden Powell e o regional do lendário chorão Canhoto foram alguns intérpretes da nova levada. “O ritmo nasce como nasce uma flor, como nasce um verso. Pedro dos Santos é o poeta que sonha, um sonho colorido de flores, e traz no peito um ritmo que é seu”, dizia a contracapa do LP Batucada, de Paulinho e sua Bateria, de 1961. Ao mesmo tempo, Pedro tornava-se cada vez mais mestre reconhecido das diferentes possibilidades de expressão percussiva. No selo do 78 rotações “Tanganyka”, de Altamiro Carrilho, podia-se ler um crédito à parte, “Efeitos Especiais: Pedro Santos”.

“QUEM DISSER QUE NÃO TEM VAIDADE, VAIDADE VEM”
Não apenas ele era mestre sonoplasta, perfeito reprodutor de sons dos animais da selva, como também dedicava-se a criar seus próprios instrumentos, como o bambussom e o sorongaio – que juntava em uma estrutura tambores com diferentes timbres, ideal para a execução de seu ritmo inventado. Bambus, chocalhos de água, berimbaus-de-boca, colheres, tubos de desodorantes, côcos e apitos plásticos também faziam parte de sua sonoridade, assim como caixas de fósforo, ganzás, tamborins, cuícas, tumbadoras, tambores, agogôs, pandeiros, bongôs e maracas.

“Ele usava os instrumentos de um modo muito único”, recorda o violonista Sebastião Tapajós, que em 1972 gravou dois álbuns em dupla ao lado de Sorongo. “Ele era empírico, não tinha uma educação formal mas sabia tudo de contar as entradas que tinha que fazer, os compassos etc. Ele botava o tamborim entre as pernas, pegava o reco-reco e botava no dedão, tirava sons que você não imagina. O pessoal ficava alucinado.”

Com enorme senso melódico e criatividade sem fim, sua abordagem no acompanhamento rítmico trazia uma concepção totalmente diferente de tudo que havia. “O Sorongo tinha muitos recursos como percussionista”, diz o contrabaixista e flautista Bebeto Castilho, do Tamba Trio, sobre os encontros musicais com Pedro. “Se entrasse um instrumento, ele ia para outros cantos e deixava livre aquele espaço. Quando entrava naquele espaço, é porque o outro estava fazendo outra coisa, cabia ele entrar ali.”

Bebeto continua lembrando: “Pedro Sorongo, que ser humano. Ele parecia que brilhava, com um jeito calmo de falar. Ele sempre chegava e apaziguava. Quando as coisas começavam a esquentar, ele calava a boca e aí de repente dizia uma frase estratégica, pequena mas muito sábia. Se tivesse alguém nervoso, esse alguém iria ficar calmo.” Musicalidade sem limites, filosofias próprias, aura zen, homem de pensamento livre e qualidade únicas. “Quando eu conheci o Pedro ele apareceu já cheio de novidades. De percussão e de tudo: da vida mesmo”, conta Sebastião Tapajós. “O Pedro sempre colocou isso na frente de tudo, o lado espiritual dele. Diferente, sabe. Ele foi uma pessoa diferente. Ele era um cidadão totalmente diferente. Simples demais. Maravilhoso, o Pedro. Foi muito gratificante conhecê-lo.”

“EU SOU DE UMA PORÇÃO QUE NEM PÓ, DE UMA PORÇÃO DE UM SÓ”
Não existem questões maiores na filosofia. Há quanto tempo o homem se pergunta quem sou, de onde venho, para onde vou? Se em nossa vida na Terra começamos como células únicas há 4 bilhões de anos e há meros 200 mil anos andamos de coluna ereta com nosso polegar opositor, o que ainda nos tornaremos, que caminho a vida na terra ainda seguirá? A grande capacidade da vida é a evolução. Em 1968, em entrevista ao jornal Correio da Manhã, Pedro dizia: “O círculo da vida impõe ao homem renovação, começando sempre em cada geração que surge, para melhor ressurgir nas gerações que vêm, obrigando a humanidade a encetar o caminho que sempre foi, mostrando a todos que todos são apenas um.” Na mesma matéria, a existência de Deus era definida “como a gente mesmo, nós é que fazemos Deus de acordo com o que somos ou representamos na vida”.

Para Pedro Santos, a revolução pessoal foi movida pela descoberta da ioga, da macrobiótica, do aprofundamento da filosofia indiana. Largou o emprego de músico fixo na TV, passou a manufaturar ao lado da esposa baquetas e bolsas para instrumentos e, ao longo de duas semanas em 1968, no estúdio da gravadora CBS, Sorongo canalizou seu máximo de musicalidade e espiritualidade em três canais de gravação. A convite do produtor Hélcio Milito (fundador e baterista do Tamba Trio, conjunto batizado com o nome de instrumento de percussão criado por Milito e inspirado por Sorongo), Pedro criava sua obra-prima Krishnanda, cruzando mensagens espiritualmente elevadas com sonoridade totalmente sui generis, original de si própria, incategorizável, momento único na música produzida no Brasil.

Envolvendo as letras existencialistas, a paisagem é de climas amorosos e selvagens, sons misteriosos de um Brasil pré-sintetizadores, infindade de brinquedos percussivos, marimbas, a voz rouca de Pedro acompanhada de coros femininos e ocasionais cordas, pianos, violões, guitarras e arranjos de sopros transcritos de suas ideias pelo maestro Pachequinho, assinando com o pseudônimo Jopa Lins. O tutor de Sorongo na ioga, professor Hermógenes, em recente matéria de Pitzan para a revista Yoga Journal, buscou explicar o título do álbum: “Etimologicamente parece que é ananda, felicidade suprema, gerada por Krishna, que é um avatar, a encarnação divina na Terra do mais puro amor”.

“AZAR OU SORTE DE QUEM MULTIPLICA E SOMA”
“É muito interessante como ele trabalha em colaboração, sempre somando”, observa Mauricio Fleury, do Bixiga 70. “A obra dele não se resume aos discos que ele assina, tem composição dele em vários discos de outros artistas e, às vezes, ele aparece só como instrumentista mesmo. É brilhante isso, um artista que, mesmo com tantas idéias, não estava fechado numa bolha. Pelo contrário, atuava diretamente no cenário musical, por isso sua obra vai vir mais e mais à tona conforme os anos forem passando. Vai sempre aparecer coisa que ele gravou, idéia que ele deu, instrumento que ele criou.”

A redescoberta de um grande artista carrega sempre a simbologia de novos caminhos que se abrem, novas possibilidades como que descongeladas do tempo e oferecidas aos novos contextos. No caso de Pedro Santos, seu Krishnanda e toda sua obra, é mais que uma reavaliação cult. Sorongo pensava e dizia coisas tão pontuais, tão únicas e tão certeiras, que com ele vem o poder de suas ideias e os novos aprendizados por elas oferecidos. Você vai ouvindo, vai ouvindo, e de repente a ideia já está dentro de você e te transforma.

Goma-Laca

Goma-Laca é um centro de descobertas dedicado ao universo da música brasileira produzida principalmente entre os anos 20 e 50 nos discos feitos de cera de carnaúba e goma-laca que giravam a 78 rotações por minuto.

Criado por mim e Biancamaria Binazzi, o Goma-Laca se desdobrou em alguns programas de rádio, profundas investigações na Discoteca Pública Municipal Oneyda Alvarenga (criada por Mário de Andrade em 1935 e até hoje casa de dezenas de milhares de 78s com músicas maravilhosas inéditas há gerações) e, em 3 de dezembro de 2011, um show especial reunindo no Centro Cultural São Paulo algumas figuras incríveis em releituras de pérolas sacadas sob medida.

Thiago França, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Wellington “Pimpa” Moreira e Samba Sam, o quinteto Sambanzo, acompanhando Juçara Marçal, Emicida, Marcelo Pretto, Rodrigo Brandão, Bruno Morais e Luisa Maita, espetáculo único, agora disponível para além das 600 pessoas que encheram a Sala Adoniran Barbosa naquela noite de sábado: o usuário do YouTube saopaulopacaembu – que não conheço pessoalmente, mas a quem agradeço imensamente – filmou o show inteiro e subiu online.

Abaixo, faixa-a-faixa para play imediato e breves comentários contextualizadores.


Tranca-rua“, do 78 RPM Todamérica TA-5474, J.B. de Carvalho, 1954, canto pra Exu adaptado por J.B. de Carvalho e Otavio Faria, também conhecido como “Sino da igrejinha”, gravado por Martinho da Vila em sua “Festa de umbanda” em 1974 e recentemente abrindo o disco do Sambanzo, além de abertura de todos os shows deles desde sempre, abriu o show, claro.


Ogum-Yára“, ponto pra Ogum adaptado por Jorge Fernandes e Léo Peracchi em 1956 (e também gravado por Inezita Barroso em 1976), se viu revestido de novos tons afro, Sambanzo na pegada e Juçara Marçal melhor cantora do mundo.


Promessa de pescador“, 1939, primeira gravação solo de Dorival Caymmi, com acompanhamento de Conjuncto Regional por Laurindo de Almeida e Garoto, do 78 rotações Odeon 11760-B, alodê Yemanjá, canção sobre motivo praieiro da Bahia. Na voz de Juçara Marçal e versão do Sambanzo, nova modernidade, grande atualidade.


Man féri man” foi dos achados mais impressionantes: Jorge da Silva e Seu Terreiro, 1956, percussão e vozes roots total, adaptação do mesmo ponto de Oxum que rendeu “Ponto de Oxum”, de Toquinho e Vinicius, também gravado por Bethânia. Simbiose tão perfeita com Juçara, Kiko, Thiago, Cabral, que já foi incorporada ao repertório do Metá Metá em versão cada vez melhor.


Terra seca“, canção que Ary Barroso dizia ser sua melhor, emocionante estilização sobre o ponto de vista de um velho escravo, famosa na sublime versão dos Quatro Ases e um Coringa, de 1943, ganhou versão à Gil Scott-Heron, com groove nervoso e declamação intensa de Rodrigo Brandão.


Macumba-ê“, grande descoberta, de Zé Fechado e Oldemar Magalhães, gravada originalmente por Zé Fechado & Albertina no lado A do 78 RPM RCA Victor 80-1306-a, 1954. Reinventada completamente no sensacional beat futurista do Sambanzo e falas do Rodrigo Brandão.


Apanhei um resfriado“, clássico de Leonel Azevedo e Sá Róriz, gravado por Almirante em 1937 (aqui a versão do dez polegadas de 1956), fazendo a ponte com a prosódia única de Marcelo Pretto, em momento respiro do show, só com seu violão, atchim.


Yaou africano“, mais conhecida como “Yaô”, composição de Pixinguinha e seu irmão Gastão Vianna, gravada pela primeira vez por Patricio Teixeira no 78 RPM Victor 34.346 em 1938, aqui com Marcelo Pretto e Thiago França pixingando, aproximando samba de roda e canto de terreiro de preto velho, vamos saravar, Xangô.


Soca pilão” foi outra das maiores descobertas: canto de trabalho escravo de campos de café do interior paulista, recolhido e gravado em 1954 no 78 RPM RCA Victor 80-1286 (no lado b de “Estatutos de gafieira”, de Billy Blanco) por Inezita Barroso acompanhada de inacreditável batuque – de impressionar a ela mesma 57 anos depois -, em grande reinvenção por Kiko Dinucci, Thiago França, Sambanzo, Marcelo Pretto.


Isto é bom“, lundu de Xisto Bahia, pelo cantor Bahiano, primeira gravação comercial brasileira, há apenas exatos 110 anos, em 1902, 78 RPM Zon-o-phone 10.001. Inaugurando nossa música na malícia, todo o sentido até hoje (Gera Samba que o diga), Marcelo Pretto em intepretação suingada e genial percussão vocal.


Até a lua chorou“, composição linda e obscura de Silvino Neto, gravada pelo Grupo X, sexteto vocal paulista, do Bixiga, em 1936, no 78 RPM Columbia 8.172, veio direto do esquecimento para encanto moderno na voz de Bruno Morais, em levada puxada ao carimbó caribenho e o Sambanzo ajudando no coro.


Diagnóstico“, inesquecível pérola de Wilson Baptista e Germano Augusto, cantada por Aracy de Almeida em 1943 no 78 RPM Odeon 12.332, tem o cenário único de uma sala de raio-X e praticamente toda sua letra construída no discurso do doutor, obra-prima de composição sobre o micróbio da saudade. Em 2000 foi regravada por Cristina Buarque e aqui aparece na voz de Bruno Morais em versão cool sobre células, riffs e vazios.


Dormi no molhado“, samba-choro de Moreira da Silva, gravado no 78 RPM Odeon 12.144, 1942 (aqui versão do LP O Último Malandro, de 1958), crônica das suas cruzando a real, senso de humor, moral particular e breques, reinventado em groove caminhante do Sambanzo e na fala de Emicida, sem me dá me dá me dá, pura cadência, que flow.


Na subida do morro“, genial composição de 1952 de Moreira da Silva com Ribeiro Cunha (na verdade, comprada de Geraldo Pereira, segundo as lendas), faz a conexão definitiva entre o samba de breque e o rap, malandragem carioca e do Cachoeira, atenção ao solo de fristáile, Emicida em momento eletrizante.


Cafuné“, samba-jongo de Denis Brean e Gilberto Martins, foi gravado originalmente por Aracy de Almeida em 1955 no 78 RPM Continental 17.200, depois por Edson Lopes em 1957 no 78 RPM Odeon 14.202, por Zezé Gonzaga em 1958 no 78 RPM Columbia 11.071 e ainda por José Tobias no começo dos anos 60 em LP. Em cada versão a música revela novas graças, e muitas graças se revelam na versão do Sambanzo com Luisa Maita, groove sensual, clima e sugestão.


Lamento negro“, macumba em adaptação de Humberto Porto e Constantino Silva, é uma maravilha de destaque entre as muitas maravilhas do Trio de Ouro, de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Gravada originalmente pelo Trio em 1941 (em Iorubá), foi regravada por Stellinha Egg também em 78 RPM em 1954, depois por Nelson Ferraz em LP em 1956 e várias outras versões (a maioria em português), pra não falar na de Hélcio Milito em 1987. Puro transe a versão do Sambanzo e voz da Luisa Maita, altamente hipnótica, trip-hop pra Xangô, fim perfeito para um grande show.


Man féri man“, não poderia ser diferente, voltou pro bis, com Juçara Marçal e participação de improviso inspirado de Emicida, música que nasce no peito, bate como atabaque, eleva e esquenta.

Reinaldo Moraes & Julio Cortázar

Falando no Cortázar, Reinaldo Moraes conta de quando conheceu o argentino, durante o ano que passou fundado por uma bolsa em Paris – experiência que originou o Tanto Faz, do qual, aliás, a história abaixo é tipo um outtake:

Nos anos 70, fiquei amigo do Davi Arrigucci Jr, professor de literatura da USP, grande ensaísta, que sabe tudo de Cortázar. Em 1979 ganhei uma bolsa para estudar em Paris. Então o Davi falou: “já que você gosta tanto do Cortázar, leva esse disco para ele”. Era um vinil de Bicho, do Caetano Veloso. Porque o Cortázar tinha vindo para o Brasil em 1972 e visto um show da Bethânia e do Caetano – inclusiva ele achou que a Bethânia era o Caetano na versão feminina, estilo Shiva e Parvati, o deus feminino e masculino dos hindus. Davi fez uma dedicatória e disse pra eu levar para o Cortázar em Paris, deu o endereço e tal. Pensei: “porra, maravilha”.

Cheguei lá, nem tomei banho, peguei o telefone e liguei. Ninguém atendeu. Tinha um amigo lá, o Giba Vasconcellos, que me acalmou e tal, falou que ele poderia não estar na cidade. Eu ligava quase todo dia. Chegou o outono e nada. Aí o Giba falou: “vamos lá na casa dele”. Pegamos o endereço e fomos. Ele morava numa rua no centro, num bairro que tem um comércio muito chique, mas na época tinha uns prédios residenciais bem de classe média. O endereço era assim: “Rua tal, número 68”. Chegamos lá e vimos as caixas de correio, típicas dos prédios de Paris. Em nenhuma delas estava escrito “Cortázar”. Aí, ficamos ali pensando, decidindo entre ir embora ou não, quando demos dois passos para fora, vimos que existia o número 68 bis. Tentamos naquele, e numa das caixas de correio estava escrito monsieur Cortázar. Mas aí não sabíamos o número do apartamento, porque só tinha o nome.

Enquanto a gente estava nessa discussão, ouvimos um barulho nas escadas, por onde descia uma equipe de TV, com todos os equipamentos, todos loirinhos, e atrás deles o Cortázar. Ele olhou para a gente. Eu e meu amigo éramos duas figuras estranhas, barbudões, cabeludões. Cortázar deve ter pensado: “tô encrencado”. Olhei para ele, não sabia falar quase nada em francês ainda – só saía um bon jour, mas não sabia exatamente em que hora falar isso -, então misturei um francês com português, coisa horrível. E ele respondeu: “ah, o disco do Caetano Veloso, que bom, você é amigo do Davi, então?” Mandou um português ali, bicho, tranquilo, quase melhor que o meu.

E aí ficamos conversando, ele um sujeito simpático, um pouco mais alto do que eu, tinha uns 75 anos, mas sem um fio de cabelo branco, uns olhos azuis, um cara bonito pra chuchu. Ficamos batendo um papinho, por uns 20 minutos, e os caras da TV esperando. Até que o Cortázar disse: “tenho que ir com eles agora, mas liga pra mim, meu telefone mudou, vou viajar, mas daqui um mês você pode ligar”. Fiquei um ano tentando ligar, mas nunca mais o vi. Esse foi o dia em que conheci Cortázar.

Daqui.

Retrato de Reinaldo por Renato Parada, daqui.

Seleções: Rainha dos Raios

Se puxou do punhal, tem que sangrar. Maria Bethânia, essa força da natureza, essa voz, esse corpo, entidade e ser, é a presença central da mix nova do DJ Bruno Komodo, apropriadamente entitulada Rainha dos Raios. Pontos intensos, sambas únicos, flor no cabelo e pé no chão, doçura e fortaleza, play abaixo.

Dj Komodo apresenta Rainha dos Raios (Bethania mixtape)
gravado ao vivo no I-Land Sounds / abril 2012
só vinil, como sempre!!!

As Yabás
Gente
Ponto do Guerreiro Branco
Awo
Alguém me avisou
Festa
Dois de fevereiro
Galope
Olhos nos olhos
Anjo exterminado
A tua presença
O meu amor
Sete mil vezes
Texto de Fernando Pessoa (fundo musical Até Pensei-Chico B.)

Melhores de 2011: Filipe Catto

Anna Calvi
Bárbara Eugênia – Journal de Bad (2010)
Ronaldo Bastos e Celso Fonseca – Liebe Paradiso
Maria Bethânia – caixas Maria e Bethânia
KD Lang – Sing It Loud
Mariana Aydar – Cavaleiro Selvagem Aqui Te Sigo
Pélico – Que Isso Fique Entre Nós
Patti Smith – Outside Society
Apanhador Só
Blubell – Eu Sou do Tempo em Que a Gente Se Telefonava
Elis Regina – Saudade do Brasil (1980)
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Em 2011 Filipe Catto lançou o álbum Fôlego.
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Mais melhores de 2011 por aqui.

A nova capa do disco Edu & Bethânia

Que viagem: a nova reedição em CD do disco de Edu Lobo & Maria Bethânia de 1967, teve a capa (de Cesar Villela) alterada, acima, agora sem a foto original. Pedro Moraes (filho de Vinicius), autor da foto, decidiu não liberar o uso de sua imagem na nova edição. (Leia-se quis ganhar mais do que a Universal estava disposta a pagar – leia-se provavelmente nada.) O CD com a nova capa está saindo dentro do box Maria (sai junto com outro chamado Bethânia), e no ano passado o mesmo aconteceu no box lançado pela mesma gravadora de Gal Costa, só que ali foi no disco Gal & Caymmi.

Teatro Bandeirantes, 1974

Mil novecentos e sessenta e oito, os programas musicais são o Faustão e Gugu de seu tempo. A TV Record tem o Teatro Record, a Tupi aluga o Cine Ritz, ambos na rua da Consolação. Bombam na audiência programas de auditório, especiais ao vivo, Jovem Guarda, Fino da Bossa. A TV Bandeirantes, inaugurada um ano antes, não quer ficar pra trás e compra o Cine Arlequim, na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, para acolher a música popular brasileira. Seis anos depois, 1974, quando naquele lugar o Teatro Bandeirantes é finalmente inaugurado, as coisas já não as mesmas. Os jovens artistas dos programas de TV já são superstars, a sigla-gênero MPB já virou commodity, todas as gravadoras, empresários, teatros, tevês já aprenderam a ganhar dinheiro e capitalizar tatuando os artistas no status quo.

Aí, seguindo de leve o modelo do mega-happening Phono 73, organizado 15 meses antes pela Phonogram (ex-Philips, futura Universal), a Bandeirantes organiza um supershow de inauguração de seu novo teatro, no dia 12 de agosto de 74, com apresentações de Rita Lee, Tim Maia, Elis Regina, Chico Buarque e Maria Bethânia, tudo na seqüência devidamente transformado em especial de TV. Exibido, arquivado e nunca lançado comercialmente – mas pirateado já em VHSs entre interessados, desde muito antes da internet.

Hoje o Teatro Bandeirantes virou igreja evangélica, os artistas ainda vivos viraram uns chatos e todas as redes de TV brasileiras se afogam na própria caretice.

Pelo menos temos o YouTube.

Todo setenta de calça marrom e jaqueta jeans, Chico convida as donzelas para um pecado safado debaixo do cobertor, em “Não existe pecado ao sul do Equador“. No fundo um sentimental, ele ameaça um “Cala a boca, Bárbara“, mas vai mesmo é de “Tira as mãos de mim“. Ou melhor, Maria Bethânia vai, surgindo no palco de surpresa e intensamente, pra cantar com voz de trovão sentimental.

1972 na música brasileira


Chico Buarque * Quando o carnaval chegar [dl aqui]
Ironias com o rock, arranjos de coreto, clima de carnaval de filme do Nelson Pereira dos Santos, canções rebuscadas e aquela delicadeza e melancolia que ganham a ala feminina: é o disco que inventa não só Marcelo Camelo, mas também toda a cena de samba universitário da Vila Madalena em São Paulo.


Caetano Veloso * Transa [dl aqui]
O disco favorito de todo fã do Caetano, o disco “mas esse é bom” de todo detrator do Caetano, o disco favorito do próprio Caetano e boa dose de inspiração pra atual “fase roqueira” dele. Gravado em Londres, com Caetano deprimido e inspirado e com a banda liderada por Jards Macalé tocando ao vivo no estúdio, criando camadas de sons, canções, emoções.


Elis Regina * Elis [dl aqui]
Elis Regina não era cantora de bossa nova nem de jazz, não era hippie nem tropicalista. Era tão idiossincraticamente pessoal que tiveram que inventar um rótulo o mais genérico possível – simplesmente “música popular brasileira” – pra dar conta de generalizar discos como esse. Muito por culpa de Cesar Camargo Mariano, recém-vindo da banda de Wilson Simonal.


Tom Zé * Tom Zé [dl aqui]
Foi ali, por volta de 1972, que Tom Zé teve que encarar de vez a dura realidade: ele não fazia parte da elite da música brasileira. Provavelmente não era nem tropicalista. Livre da responsabilidade e encarando sua própria genialidade, criou seu primeiro grande clássico – de uma série que ao mesmo tempo o jogou no esquecimento e o tirou de lá 20 anos depois.


Tim Maia * Tim Maia [dl aqui]
Tim Maia era movido a emoções fortes. E deve ter tido poucas mais fortes que a fossa e dor de corno que sentia quanto compôs e gravou esse disco, esbanjando conhecimento de causa em funksoul e transbordando despeito e desamor. Pelo menos em termos de à-flor-da-pele, o grande disco do recente biografado pela assinatura Nelson Motta.


Erasmo Carlos * Sonhos e Memórias [dl aqui]
Depois de ir gradativamente ampliando seus horizontes a cada disco desde fins dos anos 60, foi em 1972 que Erasmo assumiu que queria mesmo era ser hippie. Esqueceu aquele papo de jovem guarda, trocou de gravadora, casou e foi pro mato. Nessas, renasceu um grande compositor: agora a inspiração vinha em sambinhas, baladas folk, soul, desabafos e declarações.


Jards Macalé * Jards Macalé [dl aqui]
Animado como compositor pelo Vapor Barato da Gal e como bandleader pelo Transa do Caetano, em 1972 Jards respirou fundo e colocou tudo no seu primeiro disco: sua voz, seu violão, sua excentricidade, sua sensibilidade, a poesia de Waly Salomão e o som de Lanny Gordin e Tutty Moreno.


Gilberto Gil * Expresso 2222 [dl link]
Gil, eufórico de alegria de estar de volta ao Brasil depois de dois anos no exílio, faz um disco mais brasileiro que nunca – mas, sob a influência do primeiromundismo roqueiro britânico, também mais roqueiro do que nunca, com a pegada de Lanny e Tutty já virando assinatura.


Maria Bethânia * Drama – Anjo Exterminado [dl aqui]
Caminhando a passos largos em direção ao desbunde baiano sem limites da década de 70, mas ainda com a criatividade aguçada, Bethânia estava ligada nas coisas: chamou o irmão recém-chegado de Londres com aquelas idéias novas pra produzir um disco dela. Long story short, Drama está pra Bethânia como Transa pro Caetano.


Roberto Carlos * Roberto Carlos [dl aqui]
Em 1972 Roberto não precisava provar mais nada a ninguém. Já era há tempos o maior popstar do Brasil, já tinha sido justificado pela intelectualidade através do tropicalismo, já tinha superado tudo isso e entrado no olimpo popular com Detalhes. Então, fez a única coisa que lhe restava: inventou todo um estilo musical, hoje conhecido como “brega”.


Novos Baianos * Acabou Chorare [dl aqui]
Depois de uma estréia subtropicalista, os Novos Baianos tiveram um intensivão direto na fonte de todas as revoluções: João Gilberto, que apareceu na comunidade hippie deles, dividiu o banza e os ensinou a graça de Assis Valente. Some à epifania cool de Moraes, Baby e Paulinho o virtuosismo empírico dos jovens gênios Pepeu, Dadi e Jorginho e pronto: obra-prima.


Wanderlea * Maravilhosa [dl aqui]
Entediada com a música e com a persona em que a haviam metido nos anos 60 – música e persona que ajudaram a libertar em público o inconsciente de incontáveis adolescentes brasileiras, mas já pareciam a essa altura coisa da década passada -, em 1972 Wanderlea desbundou maravilhosa: de black power loiro na capa, cantava o feminismo, Hyldon, Gil e Jorge Mautner (com direito a trejeitos bicha e tudo).


Leno e Lilian * Leno e Lilian [dl aqui]
Dois discos, sucesso, Devolva-me & Pobre Menina e quatro anos de carreiras solo depois, Leno e Lilian reencontraram-se para reinventarem-se de jovemguardistas naif a roqueiros-folkeiros setentistas melancólicos e semibregas, sob a batuta do então produtor Raul Seixas. E não é que as vozes sacarinas em uníssono funcionam na nova roupagem e o disco se torna um clássico esquecido do folk-pop brasileiro?


Arthur Verocai * Arthur Verocai [dl aqui]
Garoto prodígio da turma dos festivais que vinha se transformando em um dos arranjadores de ouro de sua geração, em 1972 Verocai ganhou passe livre da gravadora Continental para fazer um disco todo só seu, do jeito que quisesse. Com a experiência de diretor musical de um Ivan Lins imitando Tim Maia em começo de carreira e sob a influência de suas amizades mineiras, pirou total: solos jazzísticos, pegada funk, letras hippie de tom contemplativo e o primeiro sintetizador usado em um disco brasileiro. Demorou só 30 anos para as pessoas entenderem.