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Goma-Laca

Goma-Laca é um centro de descobertas dedicado ao universo da música brasileira produzida principalmente entre os anos 20 e 50 nos discos feitos de cera de carnaúba e goma-laca que giravam a 78 rotações por minuto.

Criado por mim e Biancamaria Binazzi, o Goma-Laca se desdobrou em alguns programas de rádio, profundas investigações na Discoteca Pública Municipal Oneyda Alvarenga (criada por Mário de Andrade em 1935 e até hoje casa de dezenas de milhares de 78s com músicas maravilhosas inéditas há gerações) e, em 3 de dezembro de 2011, um show especial reunindo no Centro Cultural São Paulo algumas figuras incríveis em releituras de pérolas sacadas sob medida.

Thiago França, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Wellington “Pimpa” Moreira e Samba Sam, o quinteto Sambanzo, acompanhando Juçara Marçal, Emicida, Marcelo Pretto, Rodrigo Brandão, Bruno Morais e Luisa Maita, espetáculo único, agora disponível para além das 600 pessoas que encheram a Sala Adoniran Barbosa naquela noite de sábado: o usuário do YouTube saopaulopacaembu – que não conheço pessoalmente, mas a quem agradeço imensamente – filmou o show inteiro e subiu online.

Abaixo, faixa-a-faixa para play imediato e breves comentários contextualizadores.


Tranca-rua“, do 78 RPM Todamérica TA-5474, J.B. de Carvalho, 1954, canto pra Exu adaptado por J.B. de Carvalho e Otavio Faria, também conhecido como “Sino da igrejinha”, gravado por Martinho da Vila em sua “Festa de umbanda” em 1974 e recentemente abrindo o disco do Sambanzo, além de abertura de todos os shows deles desde sempre, abriu o show, claro.


Ogum-Yára“, ponto pra Ogum adaptado por Jorge Fernandes e Léo Peracchi em 1956 (e também gravado por Inezita Barroso em 1976), se viu revestido de novos tons afro, Sambanzo na pegada e Juçara Marçal melhor cantora do mundo.


Promessa de pescador“, 1939, primeira gravação solo de Dorival Caymmi, com acompanhamento de Conjuncto Regional por Laurindo de Almeida e Garoto, do 78 rotações Odeon 11760-B, alodê Yemanjá, canção sobre motivo praieiro da Bahia. Na voz de Juçara Marçal e versão do Sambanzo, nova modernidade, grande atualidade.


Man féri man” foi dos achados mais impressionantes: Jorge da Silva e Seu Terreiro, 1956, percussão e vozes roots total, adaptação do mesmo ponto de Oxum que rendeu “Ponto de Oxum”, de Toquinho e Vinicius, também gravado por Bethânia. Simbiose tão perfeita com Juçara, Kiko, Thiago, Cabral, que já foi incorporada ao repertório do Metá Metá em versão cada vez melhor.


Terra seca“, canção que Ary Barroso dizia ser sua melhor, emocionante estilização sobre o ponto de vista de um velho escravo, famosa na sublime versão dos Quatro Ases e um Coringa, de 1943, ganhou versão à Gil Scott-Heron, com groove nervoso e declamação intensa de Rodrigo Brandão.


Macumba-ê“, grande descoberta, de Zé Fechado e Oldemar Magalhães, gravada originalmente por Zé Fechado & Albertina no lado A do 78 RPM RCA Victor 80-1306-a, 1954. Reinventada completamente no sensacional beat futurista do Sambanzo e falas do Rodrigo Brandão.


Apanhei um resfriado“, clássico de Leonel Azevedo e Sá Róriz, gravado por Almirante em 1937 (aqui a versão do dez polegadas de 1956), fazendo a ponte com a prosódia única de Marcelo Pretto, em momento respiro do show, só com seu violão, atchim.


Yaou africano“, mais conhecida como “Yaô”, composição de Pixinguinha e seu irmão Gastão Vianna, gravada pela primeira vez por Patricio Teixeira no 78 RPM Victor 34.346 em 1938, aqui com Marcelo Pretto e Thiago França pixingando, aproximando samba de roda e canto de terreiro de preto velho, vamos saravar, Xangô.


Soca pilão” foi outra das maiores descobertas: canto de trabalho escravo de campos de café do interior paulista, recolhido e gravado em 1954 no 78 RPM RCA Victor 80-1286 (no lado b de “Estatutos de gafieira”, de Billy Blanco) por Inezita Barroso acompanhada de inacreditável batuque – de impressionar a ela mesma 57 anos depois -, em grande reinvenção por Kiko Dinucci, Thiago França, Sambanzo, Marcelo Pretto.


Isto é bom“, lundu de Xisto Bahia, pelo cantor Bahiano, primeira gravação comercial brasileira, há apenas exatos 110 anos, em 1902, 78 RPM Zon-o-phone 10.001. Inaugurando nossa música na malícia, todo o sentido até hoje (Gera Samba que o diga), Marcelo Pretto em intepretação suingada e genial percussão vocal.


Até a lua chorou“, composição linda e obscura de Silvino Neto, gravada pelo Grupo X, sexteto vocal paulista, do Bixiga, em 1936, no 78 RPM Columbia 8.172, veio direto do esquecimento para encanto moderno na voz de Bruno Morais, em levada puxada ao carimbó caribenho e o Sambanzo ajudando no coro.


Diagnóstico“, inesquecível pérola de Wilson Baptista e Germano Augusto, cantada por Aracy de Almeida em 1943 no 78 RPM Odeon 12.332, tem o cenário único de uma sala de raio-X e praticamente toda sua letra construída no discurso do doutor, obra-prima de composição sobre o micróbio da saudade. Em 2000 foi regravada por Cristina Buarque e aqui aparece na voz de Bruno Morais em versão cool sobre células, riffs e vazios.


Dormi no molhado“, samba-choro de Moreira da Silva, gravado no 78 RPM Odeon 12.144, 1942 (aqui versão do LP O Último Malandro, de 1958), crônica das suas cruzando a real, senso de humor, moral particular e breques, reinventado em groove caminhante do Sambanzo e na fala de Emicida, sem me dá me dá me dá, pura cadência, que flow.


Na subida do morro“, genial composição de 1952 de Moreira da Silva com Ribeiro Cunha (na verdade, comprada de Geraldo Pereira, segundo as lendas), faz a conexão definitiva entre o samba de breque e o rap, malandragem carioca e do Cachoeira, atenção ao solo de fristáile, Emicida em momento eletrizante.


Cafuné“, samba-jongo de Denis Brean e Gilberto Martins, foi gravado originalmente por Aracy de Almeida em 1955 no 78 RPM Continental 17.200, depois por Edson Lopes em 1957 no 78 RPM Odeon 14.202, por Zezé Gonzaga em 1958 no 78 RPM Columbia 11.071 e ainda por José Tobias no começo dos anos 60 em LP. Em cada versão a música revela novas graças, e muitas graças se revelam na versão do Sambanzo com Luisa Maita, groove sensual, clima e sugestão.


Lamento negro“, macumba em adaptação de Humberto Porto e Constantino Silva, é uma maravilha de destaque entre as muitas maravilhas do Trio de Ouro, de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Gravada originalmente pelo Trio em 1941 (em Iorubá), foi regravada por Stellinha Egg também em 78 RPM em 1954, depois por Nelson Ferraz em LP em 1956 e várias outras versões (a maioria em português), pra não falar na de Hélcio Milito em 1987. Puro transe a versão do Sambanzo e voz da Luisa Maita, altamente hipnótica, trip-hop pra Xangô, fim perfeito para um grande show.


Man féri man“, não poderia ser diferente, voltou pro bis, com Juçara Marçal e participação de improviso inspirado de Emicida, música que nasce no peito, bate como atabaque, eleva e esquenta.

Goma-Laca, Volume I

Em apresentação única, hoje às 19h no Centro Cultural São Paulo, o quinteto Sambanzo e convidados especiais reinventam achados do precioso acervo de 78 rotações da Discoteca Pública Municipal, criada por Mário de Andrade em 1935 e até hoje fantástico centro de pesquisas, infinito universo de coisas bonitas.

Investigando sonoridades afrobrasileiras de gravações dos anos 30, 40 e 50, de macumbas estilizadas a antigos cantos de trabalho, o Sambanzo cria grooves de combustão espontânea, com Thiago França no saxofone e flauta, Kiko Dinucci na guitarra, Marcelo Cabral no contrabaixo, Welington Moreira (Pimpa) na bateria e Samba Sam na percussão, recebendo seis diferentes cantores e rimadores acrescentando pontos de vista ao repertório.

Emicida relê Moreira da Silva. Luisa Maita faz versões ultracool de Trio de Ouro e Denis Brean. Bruno Morais latiniza Aracy de Almeida e Grupo X. Juçara Marçal canta Ogum no afrobeat e incorpora o transe no terreiro Iorubá do Jorge da Silva. Rodrigo Brandão encontra Zé Fechado e conecta ritmo e poesia e Ary Barroso. Marcelo Pretto faz festa pra Pixinguinha e adapta Inezita Barroso. O próprio Sambanzo encontra origens em J.B. de Carvalho e a música mostra que existe em todas as épocas ao mesmo tempo.

Parte da série Goma-Laca, que envolve também programa radiofônico, exposição dos 78s originais e pequena homenagem à Oneyda Alvarenga, primeira diretora da Discoteca e que hoje lhe empresta o nome. Noite única, só santo forte, sábado em 78 por minuto.

Esperanza Spalding & Milton Nascimento

Conheci Esperanza Spalding em janeiro de 2006, quando ela tinha 21 anos, um recém-gravado e independente álbum de estreia e vinha pela primeira vez ao Brasil, se apresentar no Sesc Pompeia. Então professora, uma das mais jovens da história da escola, já era dessas artistas que se espalham como uma coisa secreta e especial entre os ouvintes, soma constante. Na época, já me contou que era fã de Edu Lobo e Pixinguinha, o que escrevi na época na Ilustrada. Essa semana, a encontrei em um hotel de São Paulo para conversar sobre seu encontro com Milton Nascimento, em show hoje no Rock in Rio e, oxalá, um álbum juntos. Na Ilustrada de hoje ou, bate papo completo, abaixo.

Esperanza Spalding quer disco com Milton

Esperanza Spalding era uma jovem estudante de contrabaixo da famosa Berklee College of Music quando conheceu a música de Milton Nascimento. Dali até tornar-se uma das mais jovens professoras da mesma Berklee, encontrar reconhecimento irrestrito como ótima instrumentista e afinal ganhar o Grammy de Artista Revelação em 2011, a música de Milton continuou com ela.

Regravou “Ponta de areia”, convidou Milton para cantar em seu disco mais recente, tornou-se amiga próxima e veio passar o último ano novo com ele. Agora, na tarde deste sábado, dentro da programação do Rock in Rio, o encontro da música dos dois se materializa em apresentação em dupla no palco Sunset, às 16h45.

Em conversa em São Paulo, antes de partir para a Cidade do Rock, a instrumentista e cantora de 26 anos, simpática e elegante com um enorme penteado afro, contou sobre sua relação com a música brasileira e a música de Milton e os planos de continuarem fazendo música juntos.

Conversamos a primeira vez há cinco anos, quando veio ao Brasil pela primeira vez.

Que legal!

Lembro que ali você já comentou que amava música brasileira, citou até Pixinguinha.

Tinha esquecido. É interessante, tanta coisa aparece, eu até esqueço o que gostava três anos atrás. Tanta coisa aconteceu desde então.

Você se lembra de quando tomou consciência da música brasileira como uma coisa única?

Honestamente, a primeira vez que ouvi não sabia o que era, não me importava. Acho que era um disco do Stan Getz. Definitivamente me lembro de ter uma fita com várias coisas gravadas e uma delas era João Gilberto cantando, e isso foi, “uau”. Mas eu nem sabia de onde ele era. Digo, eu sabia onde ficava o Brasil no mapa, mas não tinha familiaridade com a música. Esse foi o primeiro impacto, mas não como algo a estudar ou seguir. Era uma canção incrível que eu ficava ouvindo muito.

Depois, quando cheguei na Berklee, conheci muita música nova pelas pessoas. Você sabe, é o que se faz: “ouve isso, ouve isso”. Então ouvi “Native Dancer”, de Wayne Shorter, foi quando ouvi o Milton pela primeira vez. Embora acho que eu já tivesse ouvido Hermeto Pascoal antes disso, há muitos estudantes de sua música.

Alguém tinha uma coleção de CDs com músicas de carnaval de todo o Brasil, todas as diferentes tradições de carnaval. Como aquela com o guarda-chuva, frevo. Muitos sons diferentes. Ouvi também Dorival Caymmi. Alguém me deu um CD com versões de músicas do Dorival Caymmi, foi quando conheci Caetano Veloso. E talvez Joyce. Rosa Passos também ouvi muito.

Não houve um evento específico incrível. O evento de que me lembro mais distintamente foi definitivamente ouvir “Native Dancer” e ouvir Milton. Depois disso foi apenas pessoas me mostrando coisas legais: “se você gosta disso, precisa ouvir isso”, e aí você vai descobrindo outras coisas.

Sabe dizer o que na música do Milton saltou ao seu ouvido?

Acho que não conseguiria. Pessoas assim são algo tão maior que os elementos que você pode analisar com seu intelecto. Somente alguém muito mais eloquente e poético que eu poderia dizer. De tudo que eu gosto na música dele, se eu dissesse “isso é o que eu gosto” e tirasse e analisasse, não seria a razão. É ele. Ele impacta. Ele é a força de vida de sua música. Não sei explicar isso, mas ele é incrível.

Tenho o exemplo perfeito: Maria Gadú estava em Nova York e me chamou pra tocar baixo em seu disco. Certo. Acho que ela é incrível, por isso eu disse sim. Então, o cara que estava produzindo me mandou as demos. E quando eu ouvi, fiquei meio “oh…” Não gostei. Não gostei da música. Aí fui pro estúdio me sentindo meio mal, porque tinha prometido tocar e não gostava da música. No momento em que ela começou a tocar e cantar, me apaixonei totalmente por tudo. Não é a canção – não é a letra ou nada. Quando ela canta, a letra é incrível, o som do violão é incrível, a melodia é incrível, o groove é incrível. Mas se não for ela cantando, é vazio. Bem, no caso da música do Milton, mesmo se ouvisse uma demo acho que você ficaria impressionado. Mas é ele.

E todas as outras pessoas também. Hermeto Pascoal também. Quando ouço pessoas fazendo covers de suas músicas é desafiador, então é legal, é impressionante que ele tenha escrito aquilo. Mas quando ele toca com a banda dele é totalmente diferente. Como com todos os grandes. Como Wayne Shorter e o Weather Report. É a força de vida deles, é a experiência deles, é o tom de suas vozes, do que viveram e pensaram. É de humano a humano. Sabe?

Claro. Pensei nisso ouvindo as vozes de vocês juntas em “Apple blossom”.

Uau. Ele é incrível.

Sabia que ele é originalmente contrabaixista?

Eu sei, ele me contou. Passei a ficar nervosa [de tocar perto dele].

Você já viu ele tocando contrabaixo?

Ainda não. Ele não toca! Eu fico passando o baixo pra ele e ele, “não, não”. Um dia gostaria de ouvir ele tocando. É engraçado, agora sabendo disso comecei a notar quanto as linhas baixo são importantes nas suas composições. Estávamos ensaiando esses últimos dias e quando eu erro alguma linha de baixo ele percebe na hora. Ele fica muito em contato com o baixo, dá pra sentir essa conexão.

Como tem sido a experiência de tocarem juntos?

Passei o último ano novo na casa do Milton – aliás eu fui lá com um amigo que parece um pouco com você (risos) – e lá nós tocamos muito, mas só pela diversão. Essa é a primeira vez que preparamos música para um show.

Já sabem que músicas vão cantar?

Sim. Mas não posso te contar, tem que ser surpresa. Vamos fazer músicas deles, algumas canções minhas, e de alguns outros compositores. Ele vai tocar violão e também só cantar em alguns momentos. É claro que as músicas soam diferentes, porque não estamos acostumados a tocar sua música. Mas desde o último ensaio a música está realmente viva. Ao vivo qualquer coisa pode acontecer, mas vai ser incrível.

Ouvi dizer que vocês farão um disco juntos.

Gosto desse boato. Vamos ver.

Então a possibilidade existe.

Bem, nós conversamos sobre a ideia de fazer um projeto juntos, mas… Não, não tem “mas”, nós conversamos, é isso. A coisa mais sábia a fazer é tocar, ver como vai ser. Nós definitivamente somos amigos, estamos em contato. Virei passar o próximo ano novo com ele novamente e trarei algumas canções que escrevi, veremos. Não quero que o boato se torne forte demais, porque se não acontecer vai ser decepcionante. Mas conversamos sobre isso, espero que aconteça. Seria mais profundo que um sonho tornado realidade.