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Goma-Laca 2014

Goma-Laca_2014

Dias oito e nove de fevereiro de 2014 no Sesc Vila Mariana, acontece o espetáculo Goma-Laca Volume II, Afrobrasilidades em 78 RPM, com releituras e versões de belos e pioneiros registros de música afrobrasileira – ritual e em seus desenvolvimentos em gêneros como emboladas, cocos, jongos, maracatus, a partir de discos 78 rotações, boa parte de pesquisa publicada aqui. Direção musical do maestro da Orkestra Rumpilezz, Letieres Leite, com grande banda e a participação de Juçara Marçal, Russo Passapusso, Karina Buhr e Lucas Santtana. Mais infos e pistas por aqui.

Tradição na transição

Will Holland é o exemplo perfeito de artista moderno. Produtor, multiinstrumentista, DJ, britânico versado em beats analógicos, viajado pelo universo africano, residente há mais de meia década na Colômbia, sob o nome Quantic gravou álbuns de soul com Alice Russell, seus grupos Combo Bárbaro e Quantic Soul Orchestra e o recente Los Miticos del Ritmo, além de discotecagens e escavações, recentemente dedicados ao maravilhoso universo da cúmbia. Com toda sua história como bagagem e inspiração especial nos sons tropicais, Quantic está HOJE em São Paulo para apresentação no Estúdio Emme, em festa do Só Pedrada Musical. Falei com Quantic esta semana e trocamos ideia sobre essa história massa e sua imersão no universo colombiano, seguir lendo.

Quando nasceu seu interesse pela Colômbia?

Meu interesse pela Colômbia basicamente começou quando eu visitei Cali em 2006. Um grande amigo de Cali que mora em Nova York sempre dizia, “ei, você tem que ir lá, você tem que ver como é”. Então um outro amigo, Beto Gyemant, que também coleciona discos, me disse, “já fui lá, vou de novo pra te encontrar”. Então fui, encontrei meu amigo Beto lá e fiquei na casa do avô do meu amigo. E amei. Depois de um tempo em Puerto Rico, me apaixonei por Cali. Realmente gostei da vibe. E do clima também. Venho da Inglaterra, da região ocidental, onde temos um clima frio quase o ano todo, e ir pra um lugar quente… É o clássico do europeu fora de casa, apenas ter a chance colocar sandálias e não se preocupar em usar uma capa de chuva. Foi uma tropicalidade que gostei.

O que fez você decidir morar em Cali e até montar um estúdio, onde tem gravado coisas como o recente álbum com Alice Russell?

Pensei em ir ficar seis meses. Aí fiquei seis meses e não tinha terminado tudo que queria. Então fiquei um ano, mas também não terminei tudo que queria. E agora estou lá há quase seis anos. Definitivamente me apeguei. Outra coisa que gostei foi o fato que acabei tendo um pouco mais de espaço na Colômbia [para montar um estúdio e gravar]. Eles tem lá uma grande cultura de músicos de estúdio, um padrão muito alto de músicos de estúdio. Então a musicalidade das pessoas foi um grande atrativo pra mim. Foi também uma das coisas que me fizeram querer gravar lá o disco da Alice Russell. Eu disse a ela, “ei, você tem que vir aqui, estou trabalhando com um grupo ótimo de músicos, que estamos chamando de Combo Bárbaro”. E com esse grupo gravamos o disco da Alice. Então, os músicos colombianos também são grande parte do meu interesse aqui.

O que te atraiu na música da Colômbia que o fez caçar sons antigos para as compilações Original Sound of Cumbia?

Antes de vir pra Colômbia eu estava muito envolvido com funk, soul, afrobeat, coisas com influência nigeriana e etíope. Vindo disso, fui entrando no som colombiano, que também é muito percussivo e também tem aquela raiz na África Ocidental. Comecei a me interessar por ritmos como bullerengue, cumbia, porro. Minha abordagem sempre foi coleconar discos e pelos discos encontrar sons, então a compilação Original Sound of Cumbia foi o resultado do meu trabalho de colecionar 78 rotações e compactos e LPs ao longo dos últimos anos e ir meio que os talhando e os deixando com uma seleção concisa para essas compilações. Especialmente porque muito da música estava em 78 rotações, que como formato não é tão fácil de viajar. Eles são frágeis e pesados, não é como se você pudesse levá-los para tocar como DJ. Então é ótimo tê-los compilados, e a Soundway fez um ótimo trabalho de restauração, foi muito bom.

O álbum dos Miticos del Ritmo também nasceu desse impulso?

Os Miticos del Ritmo surgiram como uma coisa paralela ao colecionar de discos. Estava apredendo acordeão e me interessando pelo som colombiano gravado em cidades como Barranquilla. E, claro, também fui me interessando pelo som brasileiro de ritmos como forró. Os Miticos del Ritmo nasceram disso. Eu queria experimentar. Também adoro gravar em rolo e a ideia era gravar tudo em fita e conseguir aquele som de cumbia antiga. Acho que a coisa me mais me atrai nesse som é esse aspecto quase similar ao reggae, a cumbia é um ritmo caribenho, tem esse pulso centrado no Caribe. Uma levada pra cima, que você também encontra no ska e no calipso. Gosto muito desse tipo de ritmo, não sei porquê.

Como foi trabalhar no projeto Ondatrópica? Acontecerão mais shows?

Trabalhar com Mario Galeano no Ondatrópica foi demais, sensacional. Aprendi muito com Mario, ele é um ótimo arranjador e um grande músico. Ficamos trabalhando junto por três semanas e convidamos 40 músicos para irem ao estúdio e registrarmos a música deles. Foi um grande encuentro de diferentes pessoas. E tivemos músicos de diferentes gerações, pessoas com 60-70 anos vindo e tocando conosco e nos ensinando coisas diferentes. Foi uma jornada de aprendizado. Também trabalhamos com Mario Rincón, que foi o produtor que gravou todos os antigos clássicos colombianos. Tê-lo ao nosso lado, mostrando ideias e técnicas de gravação, foi fantástico. Lançamos agora o disco mundialmente e estamos trabalhando para o lançamento colombiano e mexicano no mês que vem. Estamos torcendo para fazer uma turnê pela América Latina este ano e ano que vem. Quem sabe conseguimos lançar o disco no Brasil, seria incrível.

O que você busca em cada projeto, o que você sente que é o ponto em comum entre os vários estilos e lugares diferentes por trás das suas produções?

Acho que em todos os meus projetos tento encontrar um som válido. Gosto muito de texturas e sons, às vezes isso é no que mais me concentro: o som e o calor de um disco, acho que é muito importante. Mais e mais, no mundo digital, isso vem sendo negligenciado, então tento me concentrar nisso. O ponto em comum? Hmm, não sei. Acho que sou sempre informado por velhos discos, sons antigos, tem um certo tipo de som que uso pra gravar os sopros, equipamentos antigos que dão uma certa coloração ao som. Acho que todos esses projetos nascem da paixão pela música. Ouço algo e quero me envolver. Ouço algo e aquilo me faz querer tentar coisas diferentes.

Viagens diferentes também. Sempre tento gravar algo quando estou viajando, acho que é importante. Sempre viajo com algum instrumento ou alguns microfones pra poder gravar. Isso faz parte da vida moderna das pessoas que viajam trabalhando com música. Antigamente as pessoas viajavam de vila em vila com um violão, hoje em dia você viaja de cidade e cidade em um avião com um monte de discos. É uma maneira diferente de espalhar música. Disso nasce muita música diferente. Se eu tivesse ficado na inglaterra, no meu quarto na casa da minha mãe, talvez não tivesse essa variedade que tenho hoje. Passo muito tempo viajando, e isso aparece na minha música.

O que você vai tocar no Brasil, discos especiais vindo na bolsa?

Vou levar para o Brasil uma bolsa bem misturada. Nunca toquei no Brasil, estou ansioso. Vou levar muitos sons antigos do Quantic e algumas novas produções que quero tocar para as pessoas ouvirem. Também vou levar alguns clássicos colombianos e alguns clássicos brasileiros. Já estive aí duas vezes – a primeira para gravar com Arthur Verocai no Rio, e com Comanche, o baterista, em São Paulo. Também estivemos em Belém do Pará no começo deste ano para ouvir um bom carimbó e comer açaí. Amo o Brasil. E estou realmente ansioso pra chegar e tocar pras pessoas.

Goma-Laca

Goma-Laca é um centro de descobertas dedicado ao universo da música brasileira produzida principalmente entre os anos 20 e 50 nos discos feitos de cera de carnaúba e goma-laca que giravam a 78 rotações por minuto.

Criado por mim e Biancamaria Binazzi, o Goma-Laca se desdobrou em alguns programas de rádio, profundas investigações na Discoteca Pública Municipal Oneyda Alvarenga (criada por Mário de Andrade em 1935 e até hoje casa de dezenas de milhares de 78s com músicas maravilhosas inéditas há gerações) e, em 3 de dezembro de 2011, um show especial reunindo no Centro Cultural São Paulo algumas figuras incríveis em releituras de pérolas sacadas sob medida.

Thiago França, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Wellington “Pimpa” Moreira e Samba Sam, o quinteto Sambanzo, acompanhando Juçara Marçal, Emicida, Marcelo Pretto, Rodrigo Brandão, Bruno Morais e Luisa Maita, espetáculo único, agora disponível para além das 600 pessoas que encheram a Sala Adoniran Barbosa naquela noite de sábado: o usuário do YouTube saopaulopacaembu – que não conheço pessoalmente, mas a quem agradeço imensamente – filmou o show inteiro e subiu online.

Abaixo, faixa-a-faixa para play imediato e breves comentários contextualizadores.


Tranca-rua“, do 78 RPM Todamérica TA-5474, J.B. de Carvalho, 1954, canto pra Exu adaptado por J.B. de Carvalho e Otavio Faria, também conhecido como “Sino da igrejinha”, gravado por Martinho da Vila em sua “Festa de umbanda” em 1974 e recentemente abrindo o disco do Sambanzo, além de abertura de todos os shows deles desde sempre, abriu o show, claro.


Ogum-Yára“, ponto pra Ogum adaptado por Jorge Fernandes e Léo Peracchi em 1956 (e também gravado por Inezita Barroso em 1976), se viu revestido de novos tons afro, Sambanzo na pegada e Juçara Marçal melhor cantora do mundo.


Promessa de pescador“, 1939, primeira gravação solo de Dorival Caymmi, com acompanhamento de Conjuncto Regional por Laurindo de Almeida e Garoto, do 78 rotações Odeon 11760-B, alodê Yemanjá, canção sobre motivo praieiro da Bahia. Na voz de Juçara Marçal e versão do Sambanzo, nova modernidade, grande atualidade.


Man féri man” foi dos achados mais impressionantes: Jorge da Silva e Seu Terreiro, 1956, percussão e vozes roots total, adaptação do mesmo ponto de Oxum que rendeu “Ponto de Oxum”, de Toquinho e Vinicius, também gravado por Bethânia. Simbiose tão perfeita com Juçara, Kiko, Thiago, Cabral, que já foi incorporada ao repertório do Metá Metá em versão cada vez melhor.


Terra seca“, canção que Ary Barroso dizia ser sua melhor, emocionante estilização sobre o ponto de vista de um velho escravo, famosa na sublime versão dos Quatro Ases e um Coringa, de 1943, ganhou versão à Gil Scott-Heron, com groove nervoso e declamação intensa de Rodrigo Brandão.


Macumba-ê“, grande descoberta, de Zé Fechado e Oldemar Magalhães, gravada originalmente por Zé Fechado & Albertina no lado A do 78 RPM RCA Victor 80-1306-a, 1954. Reinventada completamente no sensacional beat futurista do Sambanzo e falas do Rodrigo Brandão.


Apanhei um resfriado“, clássico de Leonel Azevedo e Sá Róriz, gravado por Almirante em 1937 (aqui a versão do dez polegadas de 1956), fazendo a ponte com a prosódia única de Marcelo Pretto, em momento respiro do show, só com seu violão, atchim.


Yaou africano“, mais conhecida como “Yaô”, composição de Pixinguinha e seu irmão Gastão Vianna, gravada pela primeira vez por Patricio Teixeira no 78 RPM Victor 34.346 em 1938, aqui com Marcelo Pretto e Thiago França pixingando, aproximando samba de roda e canto de terreiro de preto velho, vamos saravar, Xangô.


Soca pilão” foi outra das maiores descobertas: canto de trabalho escravo de campos de café do interior paulista, recolhido e gravado em 1954 no 78 RPM RCA Victor 80-1286 (no lado b de “Estatutos de gafieira”, de Billy Blanco) por Inezita Barroso acompanhada de inacreditável batuque – de impressionar a ela mesma 57 anos depois -, em grande reinvenção por Kiko Dinucci, Thiago França, Sambanzo, Marcelo Pretto.


Isto é bom“, lundu de Xisto Bahia, pelo cantor Bahiano, primeira gravação comercial brasileira, há apenas exatos 110 anos, em 1902, 78 RPM Zon-o-phone 10.001. Inaugurando nossa música na malícia, todo o sentido até hoje (Gera Samba que o diga), Marcelo Pretto em intepretação suingada e genial percussão vocal.


Até a lua chorou“, composição linda e obscura de Silvino Neto, gravada pelo Grupo X, sexteto vocal paulista, do Bixiga, em 1936, no 78 RPM Columbia 8.172, veio direto do esquecimento para encanto moderno na voz de Bruno Morais, em levada puxada ao carimbó caribenho e o Sambanzo ajudando no coro.


Diagnóstico“, inesquecível pérola de Wilson Baptista e Germano Augusto, cantada por Aracy de Almeida em 1943 no 78 RPM Odeon 12.332, tem o cenário único de uma sala de raio-X e praticamente toda sua letra construída no discurso do doutor, obra-prima de composição sobre o micróbio da saudade. Em 2000 foi regravada por Cristina Buarque e aqui aparece na voz de Bruno Morais em versão cool sobre células, riffs e vazios.


Dormi no molhado“, samba-choro de Moreira da Silva, gravado no 78 RPM Odeon 12.144, 1942 (aqui versão do LP O Último Malandro, de 1958), crônica das suas cruzando a real, senso de humor, moral particular e breques, reinventado em groove caminhante do Sambanzo e na fala de Emicida, sem me dá me dá me dá, pura cadência, que flow.


Na subida do morro“, genial composição de 1952 de Moreira da Silva com Ribeiro Cunha (na verdade, comprada de Geraldo Pereira, segundo as lendas), faz a conexão definitiva entre o samba de breque e o rap, malandragem carioca e do Cachoeira, atenção ao solo de fristáile, Emicida em momento eletrizante.


Cafuné“, samba-jongo de Denis Brean e Gilberto Martins, foi gravado originalmente por Aracy de Almeida em 1955 no 78 RPM Continental 17.200, depois por Edson Lopes em 1957 no 78 RPM Odeon 14.202, por Zezé Gonzaga em 1958 no 78 RPM Columbia 11.071 e ainda por José Tobias no começo dos anos 60 em LP. Em cada versão a música revela novas graças, e muitas graças se revelam na versão do Sambanzo com Luisa Maita, groove sensual, clima e sugestão.


Lamento negro“, macumba em adaptação de Humberto Porto e Constantino Silva, é uma maravilha de destaque entre as muitas maravilhas do Trio de Ouro, de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Gravada originalmente pelo Trio em 1941 (em Iorubá), foi regravada por Stellinha Egg também em 78 RPM em 1954, depois por Nelson Ferraz em LP em 1956 e várias outras versões (a maioria em português), pra não falar na de Hélcio Milito em 1987. Puro transe a versão do Sambanzo e voz da Luisa Maita, altamente hipnótica, trip-hop pra Xangô, fim perfeito para um grande show.


Man féri man“, não poderia ser diferente, voltou pro bis, com Juçara Marçal e participação de improviso inspirado de Emicida, música que nasce no peito, bate como atabaque, eleva e esquenta.

o xaxado esquentou na gafieira

Jackson do Pandeiro, 30 faixas em mp3 de baixa fidelidade, gravadas originalmente em 78 rotações, entre 1953 e 1962. Baião, forró, rojão, cocos, macumbas, frevos e xotes compilados num mediafire por Ary do Baralho, aqui.

No play, só pra dar o gostinho, “Sebastiana”, a original, 1953, gritando á, é, i, ó, u, ipsilone:

(foto daqui.)

Quintessência


Ontem, no Studio, enquanto o Gui discotecava, tava trocando idéia com o BNegão e ele me solta essa: Meirelles passou pro outro plano. Choque total, o Meirelles não achei que estivesse indo tão cedo. O cara era mestre absoluto, inventor da coisa toda e até outro dia ainda a todo vapor.
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Infelizmente não achei nenhum vídeo dele tocando seu tenor nervoso, mas nada mal esse “O Barquinho” com flauta e o trio do Dom Salvador.
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O Som, pra mim, é o grande disco brasileiro de jazz. É o disco que define o samba-jazz. É o Kind of Blue brasileiro, é o Moanin’ brasileiro, o Chega de Saudade da improvisação brasileira. É mais: é O Som. Pefeição do começo ao fim, composições, arranjos, seqüenciamento, capa, gravação, masterização, mixagem, ilha deserta. O que dizer de Quintessência, Nordeste, Solitude? E dos acompanhantes: Dom Um Romão, Tenório Jr, Manoel Gusmão, Pedro Paulo? Sem falar em todos os sons, arranjos e composições que o Meirelles espalhou em grandes discos por aí, de Jorge Ben a Sergio Mendes a Edison Machado a tantos outros.

Baixe já, aqui.

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Em 2005, quando escrevi uma matéria sobre samba-jazz pra Folha, o Meirelles foi o primeiro cara pra quem liguei, e ouvi grandes histórias.

Antes ainda, no começo de 2003, quando fui chamado pra trabalhar na revista Jazz+, a primeiríssima coisa que quis fazer foi entrevistar o Meirelles. Fui num show dele aqui em São Paulo, o cerquei depois do show, consegui um número e semana seguinte batemos longo papo, que se transformou no primeiro entrevistão da primeira edição da Jazz+.

Na época, ele tinha acabado de voltar a tocar depois de anos, seus dois primeiros discos tinham acabado de ser relançados, ele tinha feito um disco novo e – lembra? – havia até um personagem na novela das oito inspirado nele, interpretado pelo Tony Ramos.

Abaixo, versão redux da entrevista.

Como foi voltar a tocar depois de tanto tempo?

Eu fiquei sem tocar uns 10 anos, cheguei até a vender meu sax e comprar um computador. Os computadores estavam em ascensão na época, era um instrumento novo, só que era um instrumento muito solitário. Então, eu voltei a tocar por insistência dos amigos, que não se conformavam que eu tinha parado. Eu achava que não valia a pena. Você só ouvia por aí axé e pagode, não havia espaço para outra coisa. Tiraram até o rock da mídia, quem diria o samba-jazz. Não se pode brigar com o sistema. Mas aí alguns amigos insistiram, me deram um novo saxofone de presente, programaram alguns shows, isso três anos atrás. Aí eu voltei a tocar, misturando o meu repertório antigo mais alguns jazz estrangeiros clássicos. Posteriormente fui tocar no bistrô, na Modern Sound, e fiquei lá dois anos. Lá eu tocava também bastante bossa nova, porque era uma coisa bastante heterogênea, era uma loja de discos, um bistrô, eu tocava para aquele público, o que aquele público queria ouvir. Eu aprendi a ser profissional. Já estou muito velho para precisar ficar me afirmando.

E como foi o relançamento dos seus dois primeiros discos?

Os meus dois primeiros discos se tornaram muito procurados, muito raros. Eles chegavam a valer US$400 em vinil. Imagina, US$400 por um LP? Eu mesmo cheguei a vender duas cópias que eu tinha do meu primeiro disco por US$200 cada. Então eu tive várias propostas para o relançamento dos meus dois primeiros discos, várias gravadoras entravam em contato comigo querendo relançá-los, mas as propostas não eram interessantes. Até que a Dubas, pela pessoa do Ronaldo Bastos, junto com seu irmão e a Marisa Goldman, entrou em contato comigo e eu achei que a proposta era legal. Foi uma coisa de intuição mesmo. Eu vi que o interesse deles era mais do que comercial, eles tinham interesse em valorizar o produto histórico. Nós conversamos, eles concordaram com a maneira que eu queria que os discos fossem relançados e os discos saíram, com distribuição da Universal.

Eu dei muita sorte, porque eu recebi uma mídia muito forte por causa desses relançamentos. Eu não esperava que tanta gente gostasse e tivesse interesse em mim, no samba-jazz. Acabaram saindo matérias nos principais veículos, n’O Globo, no Jornal do Brasil, na Folha de S.Paulo, na Veja, eu inclusive me tornei amigo de muitos dos jornalistas que entraram em contato comigo para fazer matérias. Tudo isso ajudou muito na divulgação desses relançamentos.

E o disco novo?

Eu fiz questão de ter um produto novo, de sair do passado, eu finalmente deixei de ser um artista virtual. Toda matéria que falava de mim dizia que eu era “lendário”, que eu era “um mito”, eu achava isso um saco! Tinha todo o espectro dos anos 60 sobre mim. Eu fiquei 30 anos sem tocar uma música minha. Eu era muito radical, achava que não valia a pena. Até que voltei a tocar, vi o interesse das pessoas e surgiu a proposta da Dubas de gravar o disco novo. É muito raro alguém se dispor a bancar um disco instrumental aqui no Brasil. É mais fácil você gravar de uma forma independente, lançar por um pequeno selo sem distribuição, mas não é a mesma coisa. Nisso, o Antonio Adolfo foi pioneiro [com seu disco Feito em Casa, de 1977]. Naquela época, ninguém gravava disco instrumental. Aí ele gravou em casa, no seu home studio. Claro que a qualidade não é a mesma, e é esse o problema. Eu sempre acreditei que o profissional tem que ser valorizado, tem que ter o mínimo de qualidade para fazer as coisas. E com a Dubas foi exatamente como eu queria. Chegamos a um denominador comum, em termos de orçamento, cada parte cedeu um pouco, e foi tudo certo.

Eu tive que praticamente iniciar minha carreira novamente, na terceira idade. Então quis gravar um disco novo, com um grupo novo. Fui lá, escolhi os músicos, escolhi o estúdio, em um mês eu escrevi as músicas e os arranjos do disco novo e em três dias gravei tudo, com mais um dia para masterização. Eu passei 15 anos como músico, produtor e arranjador contratado da ODEON, então ganhei prática, gravar rápido não foi um problema.

Depois que gravei o disco novo, aí sumiu o estigma de “músico lendário”. Eu fiquei dois anos tocando no bistrô, todo mundo já sabia onde me encontrar, já me ouvia tocar. Agora eu estou na atualidade, estou satisfeito. Eu levei três anos para fazer tudo isso. Se eu tivesse pensado em voltar de verdade antes de tocar um pouco, gravar disco novo, fazer músicas novas, ter uma banda nova, as pessoas iam olhar pra mim e dizer, “mas de onde ele veio?”´

Então eu me assumi o rei do samba-jazz. Não tem o rei da bossa nova, o rei da cocada preta? Então eu sou o rei do samba-jazz. Não sobrou mais ninguém mesmo.

Agora eu parei de tocar músicas estrangeiras. Isso é uma coisa que eu achei que tinha que fazer. Todo mundo fez isso quando assumiu um papel de liderança. O Paulo Moura, o João Donato, o Johnny Alf, eles tocavam músicas estrangeiras, mas quando assumiram um papel importante dentro da música brasileira, eles pararam com as músicas estrangeiras. Não posso querer comer e guardar o bolo, não é? O artista brasileiro tem uma certa responsabilidade, tem algo a representar. Eu sempre relutei, sempre fui um profissional e não um artista, mas agora resolvi assumir. Dá muito trabalho, é seu nome ali, você tem que administrar tudo. Agora acho que estou conseguindo as coisas como quero, então vale a pena o trabalho.

Aqui no Rio tem uma meia-dúzia de lugares onde acho que vale a pena tocar, como o BNDES e o CCBB, que têm um orçamento legal e bons espaços para música instrumental. Além desses lugares só tem barzinhos, onde você ganha mal e não tem espaço pra tocar com uma formação maior do que um trio. Eu gostaria de tocar em lugares com uma estrutura boa, com a mesma dimensão de shows grandes da música brasileira. Acho que a música instrumental deveria ter esses espaços. Mas aos poucos estou conseguindo isso. Acho que estou conseguindo abrir um espaço que espero que ajude outras pessoas também.

E você já está pensando em gravar outros discos?

Eu já estou com alguns projetos para discos novos. Eu recebi um convite da Deck Disc e de um produtor japonês para gravar um disco do Meirelles e os Copa 5 junto com a Wanda Sá, e espero que isso se concretize. Se der certo, isso deve ser já em abril. A Wanda Sá tem tocado sempre lá no Japão, com o Menescal, e acho que seria uma coisa bem bacana pra gente. Mesmo porque meus discos vendem muito bem no Japão, e não só os discos da Philips. Outros discos meus que eu gravei na ODEON também saíram lá e vendem muito bem. Além disso, existe um projeto com a Dubas de gravar um disco ao vivo do Meirelles e os Copa 5. Aí a idéia é gravar numa sala legal, com os músicos com quem eu tenho tocado ao vivo, músicas do disco novo e também algumas das minhas músicas antigas, coisas do presente e do passado.

No seu show em São Paulo você disse que nesses 39 anos entre seu segundo e seu terceiro discos a sua música não mudou, o que mudou foi o público. Suas influências ainda são as mesmas?

Não, de jeito nenhum. Eu não ouço mais jazz. O jazz já perdeu todo o significado pra mim. Mas é como um alemão que vive 20 anos no Brasil e não perde o sotaque, eu nunca vou perder o sotaque do samba-jazz, faz parte da minha personalidade. Hoje em dia eu ouço cada vez mais música brasileira, mas minha formação foi no jazz. Eu tinha 23 anos, vivia jazz, ouvia o tempo inteiro o jazz americano. Aliás, acho que em São Paulo toda a turma só ouvia discos de jazz americano. Não existia samba-jazz em São Paulo, o estilo estava todo calcado no jazz americano. Naquela época, acho que o único de todos nós que já tinha um estilo definido era o Dom Um Romão, que não tinha influências americanas. Ele tocava jazz, mas era muito brasileiro. O meu estilo mesmo, dava pra perceber, era muito influenciado por quatro saxofonistas, só variava de música pra música – mas não vou te contar quem são os quatro, você tem que ouvir e descobrir.

Depois eu toquei sax alto, mas naquela época eu ainda tocava tenor. Eu acho que é muito importante a pessoa achar o estilo. Você vê essas pessoas, esses músicos que agora vão estudar nessas escolas americanas de música, aprendem determinadas coisas e ficam só repetindo aquilo, comigo isso não funciona. Eu tenho que tocar a minha emoção, a minha melodia. Esse é o estágio final do que eu gosto de fazer, e eu acho que agora eu estou conseguindo isso. Acho que o único músico que eu conheço que começou assim, achando o seu estilo de cara, foi o João Donato, ele nasceu pronto. Desde 1958 que ele toca do jeito dele, nunca mudou, sempre foi original e com uma maneira própria de tocar. Eu não, tive que correr atrás do meu estilo. Eu fui muito influenciado por ele, inclusive. Mas hoje em dia eu acho que já tenho meu estilo, meu jeito de tocar.

Como você começou sua carreira, com o Sylvio Mazzuca, tocando no Bottle’s etc, e como você chegou a tocar com o Jorge Ben?

Eu comecei a tocar em 1958, aqui no Rio de Janeiro, com o João Donato, o Johnny Alf… Depois o Johnny Alf foi pra São Paulo e eu fui também. Havia vários grupos e várias casas noturnas na época, então a gente fazia bastante coisa. Nessa época aí em São Paulo eu comecei a tocar também com o Sylvio Mazzuca, eu estava sempre indo e vindo, sempre entre o Rio e São Paulo.

Em 1963 eu estava passando a maior parte do meu tempo aqui no Rio, tocando no Bottle’s, e o Jorge Ben costumava aparecer lá para tocar. Lá no Bottle’s a gente não gostava disso, a gente não gostava de bico, mas os dois únicos que funcionavam, com quem a gente adorava tocar, eram a Rosinha de Valença e o Jorge Ben. O Jorge Ben sempre aparecia lá e tocava aquelas duas primeiras músicas dele [“Mas, Que Nada” e “Por Causa de Você, Menina”], até que o Manoel Gusmão levou ele lá na Philips, pra ver se ele gravava. Aí o Armando Pittigliani adorou, porque ele era um cara completamente desconhecido e em uma semana vendeu cem mil discos. Que naquela época não era nem compacto, era 78 rotações, esse foi o último 78 rpm, sabia? Depois vieram os Long-Playings e depois os compactos.

E quando nós fomos lá e gravamos com o Jorge Ben, o Armando Pittigliani chegou pra mim e disse: “o Jorge Ben é ótimo, mas o som dessa sua banda é bem interessante, hein?” e convidou a gente pra gravar um disco. Ele, inclusive, só conheceu o som do disco depois de gravado. Ele era um cara que acreditava muito na gente, por isso que ele produziu as melhores coisas, o Tamba Trio, Os Cariocas… E esse foi o meu começo. Depois disso eu fui pra ODEON, onde eu também gravei bastante coisa. Tem até um disco de 1969, Tropical, que é legal e acabou de ser relançado por uma gravadora inglesa. Mas esse não é samba-jazz, é latin jazz, por isso eu até mudei a formação e o nome, de Copa 5 pra Copa 7.

Então por que você diz que o Samba-Jazz!! é o seu terceiro disco?

Eu digo que o disco novo, Samba-Jazz!!, é o meu terceiro disco porque é o terceiro disco do Copa 5, que é o meu projeto pessoal. Os outros que eu lancei não fazem parte dessa minha trajetória. Quando eu estava na ODEON eu produzi, arranjei e orquestrei muitos discos, mas não botei meu nome em nenhum deles, para não misturar as coisas, não virar uma salada. Eu fiz arranjos até pro Chacrinha, mas ninguém sabe disso. Eu quis conservar o meu nome ligado ao samba-jazz, e acho que consegui. Senão fica como esses artistas que cada ano estão fazendo uma coisa diferente, você nunca sabe qual é a cara deles, o que eles gostam de fazer. É uma questão de estilo, é a minha maneira de fazer as coisas. Eu gosto de escolher os músicos com quem eu vou tocar, arranjar tudo legal. Eu tenho 60 anos, não preciso ficar me exibindo, mesmo porque eu sou meio preguiçoso. Mas eu gosto de interatividade, de tocar com pessoas diferentes, ver o que elas acrescentam às minhas músicas com seus solos. Não é como aquele menino, Yamandu Costa, que toca até demais. Ele é virtuose demais, não sobra espaço pra mais ninguém tocar com ele. [risos] Eu tenho segurança e posso dizer, nunca gravei um solo de bateria em um disco meu. E olha que eu toquei com os melhores bateristas, como o Dom Um Romão e o Edison Machado. E isso é uma questão estética, é um tipo de sonoridade que eu quero preservar em meus discos. Ao vivo é outra coisa, existe mais liberdade, mas nos discos eu quero manter um padrão. É tudo feito com espontaneidade, mas é uma espontaneidade organizada.

Havia mais efervescência na música nos anos 60?

Essa é uma boa maneira de dizer isso. A música era melhor naquela época. Mas acho que isso foi um reflexo de todo o momento criativo dos anos 60, tudo era mais rico, em todas as manifestações artísticas. Inclusive aqui no Brasil. Mas infelizmente nós tivemos o problema político que interrompeu e tornou tudo cada vez mais difícil. Na música acontecia também que nós tínhamos 20 anos, éramos todos muito românticos. Nós gostávamos tanto de tocar que não nos importávamos com a falta de profissionalismo. Os que tinham visão tomaram um avião e foram embora do Brasil. Porque aqui era assim, quem tocava tinha que tocar sem luz, sem som, sem palco. Mas nós tocávamos sem pensar muito, era como um hobby, era algo paralelo. E é assim até hoje. Eu tenho amigos aí em São Paulo que trabalham com publicidade, fazendo jingles, há 20 anos. Mas eles estão sempre tocando música instrumental por aí, ninguém agüenta ficar só fazendo jingles. Hoje eles tocam com um nome, amanhã com outro. Eu acho que esse nosso romantismo parou nos anos 60, agora a gente tem que buscar o melhor pra gente da melhor maneira.

Será que a música instrumental brasileira está tendo uma segunda chance?

Acho que a burrice da música nos últimos 10 anos entupiu as pessoas. As gravadoras não sabem mais o que fazer, ou melhor, não sabem mais fazer. É tudo tão repetitivo e tão ruim que o mercado ficou muito esquisito. E agora eles acordaram um pouco, você vai nas lojas e vê só relançamentos, de todos os estilos. É uma coisa que eles deveriam ter feito há muito tempo, mas ainda bem que estão fazendo. Então acho que essa coisa boa que nós temos agora é uma coisa de relançamentos, acho que continua sendo muito difícil para a música instrumental ter uma oportunidade em disco hoje em dia. E, para tocar ao vivo, talvez esteja melhorando pouco a pouco. Muita gente tem tocado, mas não da melhor maneira. As pessoas tocam hoje aqui, amanhã ali, em uns 4 lugares por semana, ganham R$100 por lugar, no fim do mês pagam o aluguel. Mas eu quero fazer samba-jazz e quero ter espaço.

O samba-jazz deveria ser reconhecido como um estilo do jazz, como o be-bop ou o cool jazz?

Acho que sim. Porque você veja, gente como o Stan Getz e o Bud Shank ficaram famosos assim e não compuseram nada como eu. Eles pegaram a bossa e ficaram ricos, sem compor. Não é uma música instrumental original. Mas aqui o rei sou eu. [risos]

Você passou um tempo no exterior. Por que decidiu voltar, se lá as oportunidades eram melhores?

Eu morei no México, na Suécia, em Monte Carlo, mas no fim eu sempre queria a minha cidade. Eu fui viajar com a minha família, foi ótimo, tive ótimas oportunidades. A melhor oportunidade da minha vida foi em um cassino em Monte Carlo. A Grace Kelly ainda estava viva, eu tomava uísque com o Frank Sinatra na mesa. E o dono do cassino me pagava muito bem. Mas uma hora a ficha caiu, aquilo era muito bonito, mas não era aquilo que eu queria, era tudo muito comercial. Talvez eu devesse ter tido paciência, ficado mais um pouco, enchido o bolso de grana antes de voltar, mas eu não agüentei. E, no fim, quando eu voltei, era o governo Médici e as coisas estavam ainda piores.

No texto da contra-capa do seu primeiro disco, de 1964, você escreveu que “nesta era de produções em massa”, era um “velho sonho feito realidade” gravar “uma música sem preconceitos e limitações comerciais”. E o que você acha da música hoje?

Pois é, eu tinha 23 anos e já era pessimista, e hoje em dia as coisas só pioraram. Acho que a indústria fonográfica do jeito que está é uma coisa antropofágica, que se destrói. Essa coisa da Egüinha Pocotó, não tinha isso nos anos 60. Tinha coisas ruins naquela época, mas elas não tiravam o espaço das coisas boas. Hoje em dia tem muita gente interessada em música boa, mas ninguém tem acesso. Quando as rádios FMs surgiram, elas só tocavam música instrumental, o tempo inteiro. Hoje em dia, você ouve uma hora por semana de música instrumental e é quase um favor. As coisas mudaram radicalmente, e eu não entendo porquê. Chegou um ponto em que eu desisti. E isso foi logo depois de lançar meu segundo disco, em 1965. Não acreditava mais naquilo. Eu vi amigos meus enlouquecerem, literalmente, e morrerem. Uma mistura de drogas e bebidas e frutrações, e eu não queria isso pra mim. Mas hoje as coisas estão melhorando, pelo menos para mim. Espero que melhore para os outros também.

Você está até sendo citado na novela das oito. Como aconteceu isso?

Eu conheço o Manoel Carlos há bastante tempo, trabalhei com ele na TV Record. Outro dia eu toquei na festa de lançamento da novela das 8, em que o meu amigo Laércio de Freitas está atuando. Ele foi o pianista do meu disco novo e agora é o pianista da banda do Tony Ramos na novela. Além de músico ele é ator. Então às vezes o Manoel Carlos coloca alguma piada comigo no texto. O pessoal da banda fala para o tony Ramos, que é um saxofonista, “toca direito senão a gente vai chamar o Meirelles pra ficar no seu lugar, hein?” e ele responde, “e você acha que alguém como o Meirelles vai querer tocar aqui?!”. [risos]

Sem vocês eu vivo, outras mulheres, mas sem ela não posso viver

Uns meses atrás o pessoal do Gafieiras me convidou pra participar de uma coluna muito legal do site, chamada Cinco pra Uma, em que eu deveria escolher cinco músicas pra uma semana. Aproveitei que quase nunca escrevo sobre sambas antigos, que adoro, e escolhi cinco músicas brasileiras dos anos 30 a 50.

Ficou assim:

01. PIERRÔ APAIXONADO
Autores. Noel Rosa e Heitor dos Prazeres
Intérprete. Joel e Gaúcho
Gravadora/Ano. RCA Victor/1936

O grande talento de Noel Rosa sempre foi a simplicidade sofisticada de suas músicas e seu aguçado senso de humor. Nessa marchinha de 1936 (gravada pela dupla Joel e Gaúcho, com arranjo de Pixinguinha), ele conta a triste desventura do pobre Pierrô que “por causa de uma Colombina acabou chorando, acabou chorando”. A partir do refrão do parceiro Heitor dos Prazeres, Noel descreve o causo e escreve uma das melhores estrofes da história da música brasileira:

A Colombina entrou no botequim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: “Pierrot, cacete
Vá tomar sorvete com o Arlequim”.

02. OUTRAS MULHERES
Autores. Wilson Batista e Jorge de Castro
Intérprete. Carlos Galhardo
Gravadora/Ano. RCA Victor/1945

Pobre Carlos Galhardo. Nessa composição de Wilson Batista e Jorge de Castro, ele canta sobre o fim de seu relacionamento: “eu e ela já chegamos ao fim”. O motivo? “É por causa de vocês, outras mulheres.” Claro, quem é homem sabe: a culpa é sempre delas, é muito chato ser gostoso. No final, de joelhos, ele implora às outras mulheres: “vocês devem me esquecer”. Ah, essas outras mulheres, sempre tentando transformar os pobres homens em levianos.

03. VOCÊ ESTÁ SUMINDO
Autores. Geraldo Pereira e Jorge de Castro
Intérprete: Ciro Monteiro
Gravadora/Ano. RCA Victor/1943

Outra de Jorge de Castro, esta em parceria com um dos mais geniais sambistas da primeira metade do século passado: Geraldo Pereira, autor de músicas sensacionais como “Acertei no milhar”, “Cabritada mal sucedida”, “Sem compromisso”, “Falsa baiana” e a dupla “Escurinha” e “Escurinho”. Neste sacudido “Você está sumindo”, Ciro Monteiro canta sobre como ficou depois do tal dia em que sua neguinha lhe deixou. Ele sente-se tão acabado que quem o conhece passa por ele jogando piadas e sorrindo: “você tá ficando acabado, ih, você tá sumindo”. O regional que o acompanha na gravação original, com um belo solo de flauta, cria um balanço que é quase um carimbó.

04. PODE SER?
Autores. Geraldo Pereira e Marino Pinto
Intérprete: Isaura Garcia
Gravadora/Ano. Columbia/1941

Outra do inspirado Geraldo Pereira, em parceria com Marino Pinto – mais um autor de ótimos sambas. Com acompanhamento do regional de Benedito Lacerda e sua incrível flauta, “Pode ser?” foi o lado B do primeiro 78 rotações gravado por uma Isaurinha Garcia de 22 anos de idade. Estréia impressionante, com sua vozinha pequena e perfeita, bem colocada, cantando com emoção e sutileza essa composição cheia de doçura, em que declara que “meu coração não é fingido” e “precisa muito, muito de você”, para concluir fazendo a pergunta-título. Vale notar que na época eram comuns os sambas que citavam em suas letras expressões em francês (Assis Valente, por exemplo, era mestre nisso) e “Pode Ser?” não fica atrás: “por que é que você quando passa por mim não me dá mais bonjour se eu sempre vi em você o meu rêve d’amour?”.

05. TIM TIM POR TIM TIM
Autores. Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques
Intérprete: Os Cariocas
Gravadora/Ano. Sinter/1951

Uma de minhas canções favoritas de todos os tempos, hoje em dia muito mais conhecida na versão de João Gilberto de 1977. A gravação original, apesar da baixa fidelidade de gravação da época, que faz com que todos os instrumentos fiquem embolados, tem um charme insuperável: dos pum pum pum paibô do começo às harmonias vocais dos Cariocas ao violão quase samba-rock aos comentários de clarinete, é tudo delicioso. A letra, ao mesmo tempo triste e resignada, quase debochada, fala sobre um fim de relacionamento com uma sofisticação poética insuperável até hoje: “mande a carta em que eu dizia ‘o amor não tem fim’ que eu lhe mando outra explicando tim tim por tim tim”. Não sei sofrer, não sei chorar, eu sei me conformar.