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Os cinco melhores discos de Maysa

Segundo o blog Maysa Monjardim Oficial. Concordei geral, só senti falta do ao vivo de 1964 com Eumir Deodato, lançado pela Elenco com aqueles olhos em preto e branco na capa.

1) Ando Só Numa Multidão de Amores (Philips, 1970)

Além de um repertório bem escolhido, o que chama a atenção é a segurança e as diferentes nuances da voz grave e rouca de Maysa, que em algumas faixas como “Chuvas de verão” e “Quando chegares” abusa da sensualidade e do intimismo.

2) Maysa (RCA Victor, 1966)

Talvez este seja o disco em que Maysa mais expõe sua versatilidade – da balada jazzística “Just in time” ao samba clássico “Tristeza”, passando pelo maior afro-samba de Baden e Vinicius: “Canto de Ossanha”.

3) Convite Para Ouvir Maysa Nº 2 (RGE, 1958)

Um repertório escolhido com primor, 4 novas composições de Maysa e 7 outras interpretações, todas orquestradas pelo maestro Enrico Simonetti, que também assinava os arranjos e a regência do disco. Ali estava a canção “Meu mundo caiu”, tida como o maior sucesso de toda a carreira de Maysa, além de outras canções que se tornariam clássicos, como “Por causa de você”, “Bronzes e cristais”, “Bom dia, tristeza”, “Felicidade infeliz”, “Bouquet de Izabel” e “Diplomacia”.

4) Barquinho (Columbia, 1961)

Em seis faixas Maysa foi acompanhada pela orquestra Columbia, e em outras seis, por pequeno conjunto (Roberto Menescal, Bebeto Castilho, Luiz Carlos Vinhas e Hélcio Milito). O disco foi um verdadeiro marco na carreira de Maysa, não só por representar uma comunhão com a Bossa Nova, mas representava também um novo jeito de cantar, novas nuances, novos contrastes, o verdadeiro ritmo da inovação.

5) Maysa Sings Songs Before Dawn (Columbia, 1961)

Gravado nos estúdios da Columbia Records norte-americana, no inverno de 1960 em Nova York, durante a temporada de Maysa nos Estados Unidos. (…) O repertório do disco é basicamente formado por canções estrangeiras, principalmente releituras de grandes clássicos, como “You better go now”, “The end of a love affair”, “Mean to me”, “I’m a fool to want you e “The man that got away”. Músicas do repertório de grandes estrelas como Billie Holiday, Judy Garland, Chet Baker e Frank Sinatra. Maysa também é acompanhada pela orquestra de Jack Pleis.

João Gilberto disco-a-disco

Onze álbuns gravados em estúdio e metade disso ao vivo – cinco e meio. Menos de 17 discos de registro do som que tanto impacto causa na música há 50 anos: a voz e violão de João Gilberto. Mais de cinco décadas depois, o assombro e a influência que a arte de João Gilberto ainda inspira são os mesmos de quando lançou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1959. João Gilberto já sabia tudo: constantemente reinventando e evoluindo suas canções e interpretações, toda sua obra é lida como a evolução de uma sonoridade única, elaboradamente simples e infinitamente sofisticada. Logo abaixo (originalmente para o Uol em 2011, nos 80 anos de João), sua discografia comentada, do primeiro disco, lançado em 1959, até o mais recente, de 2004.


“Chega de Saudade” (1959)

Depois de participar do disco “Canção do Amor Demais” (de Elizeth Cardoso) e lançar dois 78 rotações em 1958, João Gilberto chegou à modernidade dos LPs ajudando a inventá-la. A voz íntima do ouvido, o som de violão absolutamente claro, a abordagem ao mesmo tempo casual e lapidada: eram muitos elementos novos que somavam àquele núcleo de criação exemplar. Além da remodernização de antigos sambas da década de 40 – um Dorival Caymmi, um Marino Pinto, dois Ary Barrosos -, contribui muito com o sabor de novidade a presença do produtor Tom Jobim, com três canções, seus pianos discretos e seus arranjos cheios de pequenos detalhes nas cordas e sopros, como contracantos de João.

Grande momento: “Morena boca de ouro”, releitura de um sucesso de 1941 de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas, aqui com o piano de Tom Jobim e a economia do arranjo impressionantes até hoje.


“O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960)

O segundo LP de João Gilberto já começava ousado na capa, em preto-e-branco solarizado, criada por Cesar Villela, que em breve faria as famosas capas da gravadora Elenco. Gravado pouco mais de seis meses depois do primeiro disco, e novamente com direção musical de Tom Jobim, o álbum trazia no repertório seis novas canções do produtor, mais um Caymmi e um antigo sucesso nunca gravado do tempo de conjuntos vocais: “O Pato”.

Grande momento: Abrindo com vocalises que reinventam as harmonias da versão original do conjunto vocal Anjos do Inferno, de 1945, “Doralice”, de Caymmi, ganha versão definitiva com João Gilberto, em nada além de um minuto e 29 segundos. De acompanhamento, além de seu violão e leve percussão, a modernidade do piano delicado e cristalino de Tom Jobim e breves comentários da flauta no contraponto.


“João Gilberto” (1961)

No mesmo fôlego, um ano depois foi gravado o terceiro LP, homônimo, de João Gilberto. Em algumas faixas, acompanhado do conjunto do pianista Walter Wanderley, todo o resto novamente com Tom. Além de três novas do produtor, o repertório continua lembrando antigos sambas dos anos 40, desta vez com dois Caymmis, um Geraldo Pereira e um Bide/Marçal.

Grande momento: “A primeira vez”, samba de Bide e Marçal cantado por Orlando Silva em 1939, surge em versão quase invertida: o volume do original é traduzido em arranjo quase solo de voz-e-violão, apenas com o piano ocasional de Tom.


“Getz/Gilberto” (1964)

E então, o mundo descobriu. Gravado em Nova York ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz (e com Tom ao piano), o álbum foi lançado pela gravadora de jazz Verve e se tornou famoso em todo o planeta, ganhando cinco prêmios Grammy. Cantada pela mulher de João, Astrud, “Girl from Ipanema” saiu em single (sem a voz de João) e vendeu mais de um milhão de cópias – a canção se tornou uma das mais regravadas da história.

Grande momento: O máximo de sublime de João em disco se revela em sua interpretação de “Pra machucar meu coração”, do então recém-falecido Ary Barroso, que João muito admirava e havia acabado de conhecer. Perfeição no piano de Tom, sax de Getz, baixo e bateria de Tião Neto e Milton Banana, e João, no seu mais suave e musical.


“Getz/Gilberto II” (1964)

O primeiro disco ao vivo (ou meio) de João, gravado no Carnegie Hall em outubro de 1964, lado B de um LP com Stan Getz do outro. Na versão em CD, cinco faixas bônus trazem João e Getz juntos, com Astrud.

Grande momento: Apesar de não manter a aura de magia do encontro em estúdio, “Você e eu” ao vivo é mais um interessante encontro do violão ritmado do João com o sax jazzístico de Getz e a voz vaporosa de Astrud.


“En Mexico” (1970)

Gravado durante temporada de João Gilberto no México, como já fica claro no título, o álbum só foi gravado seis anos depois do último, e desta vez com arranjos de Oscar Castro Neves. Entre as novidades do repertório, três boleros, dois Jobins, duas autorais sem letra e uma composição de seu amigo João Donato gravada dois anos antes por Sergio Mendes: “The Frog”.

Grande momento: João canta tão próximo do microfone que sua respiração funde-se com sua voz com inigualável efeito de intimidade com o ouvinte em “Astronauta” (também conhecida como “Samba da pergunta”), só com seu violão, piano pontuando e etéreas cordas ao fundo.


“João Gilberto” (1973)

O auge do minimalismo zen de João, gravado novamente em Nova York. Desta vez acompanhado apenas do percussionista Sonny Carr e, em uma faixa, da voz de sua então nova esposa, Miúcha. Além de um Jobim, três faixas sem letra e mais alguns sambas antigos, a grande novidade são canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Grande momento: É irresistível acompanhar as harmonias vocais que João cria em contracanto com Miúcha em “Isaura”, sua versão do samba de 1945 de Francisco Alves. João, virtuose dos detalhes.


“Best of Two Worlds” (1976)

Com repertório baseado no chamado “álbum branco”, de três anos antes, traz novo encontro com Stan Getz, mais de dez anos depois do “Getz/Gilberto” original. Duas faixas são cantadas solo por Miúcha e uma novidade do repertório é “Retrato em Branco e Preto”, parceria do irmão da noiva, Chico Buarque, com Tom Jobim.

Grande momento: Cantada com serenidade e emoção por João, “Ligia” é uma novidade de Tom Jobim até hoje: João canta a primeira versão da letra, diferente da que depois ficou mais conhecida, com retoques de Chico Buarque. Getz aparece com dois solos dobrados, sobrepostos com melodias diferentes.

(Bônus momento: “É preciso perdoar“.)


“Amoroso” (1977)

Trazendo composições em inglês, italiano e espanhol e arranjos de orquestra do alemão Claus Ogerman – que havia cuidado da orquestra nos discos solo de Tom Jobim -, “Amoroso” foi desde seu lançamento recebido como momento de gala para João e é até hoje um de seus álbuns mais conceituados entre jazzistas.

Grande momento: Não é nem preciso entender a letra em italiano de “Estate” para ficar tocado com sua sensibilidade. Lendo-se, então, o “verão que criou nosso amor” e agora é um “legado de dor”, emocionante.


“João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” (1980)

Segundo disco ao vivo de João, de um especial de TV da Rede Globo com plateia, orquestra e participações de sua filha Bebel Gilberto (então com 14 anos) e Rita Lee. Johnny Alf e Lamartine Babo são surpresas do repertório.

Grande momento: Antiga marchinha de 1939 de Lamartine Babo, cantada por Mário Reis em dueto com Mariah, “Jou Jou Balangandãs” vira pura bossa com a voz da tropicalista Rita Lee, interpretações em pura doçura.


“Brasil” (1981)

Gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia: o violão de João, comentários dramáticos nas cordas e percussões e as quatro vozes se fundindo – Bethânia canta suave como nunca antes ou depois. Quase um disco conceitual sobre a Bahia, com versões de Caymmi, Ary Barroso e, novidade, Os Tincoãs.

Grande momento: Versão do standard americano “All of me” pelo letrista Haroldo Barbosa, “Disse alguém” é uma pérola, com João fazendo uma adaptação jazzística da sua batida ao violão, pequenas alterações na melodia e toda uma nova cor nas imagens em português.


“Ao Vivo em Montreux” (1986)

Terceiro disco ao vivo e um dos melhores momentos de João no palco, foi gravado – todo de voz e violão – no famoso festival de jazz suíço em 1985 e lançado em LP duplo, depois CD simples com duas músicas a menos.

Grande momento: O antigo sucesso de 1948 de Haroldo Barbosa na voz d’Os Cariocas, “Adeus América”, ganha todo um novo contexto na voz mântrica de João Gilberto, que tanto tempo morou nos Estados Unidos e havia retornado ao Brasil há pouco.


“João” (1991)

Com arranjos de cordas do americano Clare Fischer sobre a base de violão e voz de João, o disco não atinge os mesmos níveis de Amoroso, mas tem ótimo repertório, com Noel Rosa, Cole Porter, bolero, chanson.

Grande momento: João parece ter total controle sobre como fazer o tempo parar, andar para frente ou para trás em seus ritmos de violão e andamentos vocais. Em “Eu sambo mesmo”, de Janet de Almeida, cantada pelos Anjos do Inferno em 1946, o sublime é atingido já nos primeiros segundos.


“Eu Sei Que Vou Te Amar” (1994)

O quarto disco ao vivo de João e o mais sem graça, com mixagem imperfeita, edição brusca e repertório sem surpresas. “Você não sabe amar” é boa novidade.

Grande momento: “Lá vem a baiana”, de Caymmi, sempre perfeito na voz de João.


“Live at Umbria Jazz Fest” (1996/2002)

Quinto disco ao vivo de João, gravado na Itália em 1996 e lançado em CD em 2002. Mais atualizações de canções de todas as fases da carreira de João.

Grande momento: “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, tão conhecida e sempre tão nova com João.


“Voz e Violão” (1999)

Produzido por Caetano Veloso, foi o último de estúdio gravado por João e o único inteiramente só de voz e violão. O repertório recupera sambas antigos de Bororó, Herivelto Martins, uma raridade de Tom Jobim, dois Caetanos e novas lapidações de “Chega de saudade” e “Desafinado”, cada vez mais sintéticas.

Grande momento: Dessa vez João Gilberto não foi tão longe, apenas 1980, para encontrar uma maravilha. “Você vai ver” foi lançada no álbum Terra Brasilis, de Tom Jobim, como uma elegante canção de fim de amor, aqui transformada em pura candura.


“In Tokyo” (2004)

País que cultua João Gilberto talvez até mais que o Brasil e recebe visitas frequentes para turnês, o Japão rendeu o mais recente disco ao vivo de João, sexto de sua carreira. Gravado em 2004, João tinha então 73 anos e faz ótima performance, tranquila e depurada.

Grande momento: Aracy de Almeida cantava “Louco” de Wilson Batista em 1946, e desde os anos 50 João a traz em seu repertório, apesar de nunca tê-la gravada em estúdio. Canta ao vivo a história do louco que chora e anda pelas ruas, transformando-se até num vagabundo.

Myriam Taubkin sobre Amado Maita

De família muito ligada à música, cantora e ouvinte curiosa desde cedo, Myriam Taubkin cresceu entre figuras-chave de muita música em São Paulo, ela própria grande produtora e curadora de diversos projetos legais há muitos anos. Inteligente e elegante, foi generosa e amorosa e ótima ajuda na pesquisa para realização do show em homenagem a Amado Maita, que acontece este próximo fim de semana no Sesc Pinheiros, companheira próxima que foi de Amado. Amigos de adolescência, foram casados por dez anos, entre os anos 70 e 80, juntos na fase mais produtiva de Amado. A meu pedido, Myriam escreveu belo texto com algumas lembranças pessoais, emocionais e musicais, breve retrato de um momento, dela, de Amado, da vida, da música e da cidade.

Conheci Amado Maita aos 16 anos, quando o vi na platéia do então festival de música do clube Alto de Pinheiros, onde me apresentava com um grupo defendendo a canção “Reflexão”, de sua autoria, que faria parte do único álbum de Amado, lançado no ano seguinte. Daniel, meu irmão, nos apresentou. Mesmo sendo classificada, ele considerou nossa interpretação ruim e quis ele mesmo defendê-la na final. Ganhou o troféu de melhor intérprete.

Ficamos muito amigos. Eu vinha de uma educação judaica, cheia de regras de boa educação em casa. Estava no primeiro científico do Colégio Rio Branco. Quando entrei pela primeira vez na casa do Amado, na rua Santo Antonio no Bixiga – era um almoço familiar normal, em algum dia da semana – fiquei atônita com a algazarra, o bom humor e a troca de afetos e insultos na mesa, enquanto comiam macarrão ao sugo, frango assado com batatas e outros quitutes da cozinha italiana, misturada com a árabe, preparados pela mãe dele, Dona Bernadete.

Acho que foi ali que descobri o Brasil, um outro Brasil.

Foi quando convivi de fato com a mestiçagem brasileira, com todo tipo de gente das mais diversas profissões, formais e informais, dentro e fora da legalidade daquela época, amigos do Amado e de seu pai, Hassam – Tito para os íntimos. Tito tinha um estacionamento na Rua Santo Antonio, na famosa ‘5 esquinas’, era querido no bairro e fora dele, recebendo gente pra uma conversa na calçada o dia todo. Amado era seu principal ajudante. Super simpático, inteligente, apaixonado por música, um talento para compor, tocar violão e cantar (e dançar! Como o Amado dançava, não tinha pra ninguém), atraía para ele a nata dos músicos da noite de São Paulo.

Foi com Amado que ouvi Tom Jobim, João Gilberto, Milton Nascimento, João Donato, Miles Davis, John Coltrane, Charles Mingus, Moacir Santos e tantos outros.

Anos depois nos casamos. Tivemos duas filhas.

Lembro quando em 1992, época em que eu produzia a série Arranjadores, no Cultura Artística, trouxemos – meu irmão Benjamim e eu – Moacir Santos da California, onde ele vivia, como um dos artistas convidados. Por conta do Amado, já conhecíamos toda a obra de Moacir e cantávamos, inclusive as meninas, grande parte de suas músicas no nosso cotidiano em casa. Quando o conheci naquela ocasião, e já separada do Amado havia anos, a primeira idéia que me veio à cabeça foi levar Moacir de surpresa ao estacionamento. Parei o carro, buzinei pro Amado e enquanto ele se aproximava, abri a porta do lado da calçada. Ao ver a figura de Moacir assim de sopetão, um ídolo pra ele, Amado abriu um sorriso, ficou numa alegria que contagiou tudo em volta. Fiquei feliz e eles se tornaram bons amigos.

Moramos em várias casas, em bairros diferentes da cidade. Pra qualquer nova morada que seguíamos, muitos amigos do Amado nos acompanhavam e também mudavam de endereço pra permanecerem perto dele.

Além da Teresa e da Luísa, devo muito ao Amado. Foi meu principal amigo e companheiro entre os meus 16 e 30 anos, período de formação de qualquer pessoa. Tínhamos muito assunto, sempre. Vivemos juntos durante 10 anos e continuamos amigos até o dia em que ele se foi.

AMADO

Há algo de misterioso e profundo no único LP lançado por Amado Maita (1948-2005), pela gravadora Copacabana, em 1972. Algo no cruzamento de jazz elevado e samba espiritual, nas composições existenciais (muitas com letra do parceiro Zé Wilson Lopes), na gravidade e beleza da voz de Amado, no coração que coloca em cada interpretação. Gravado em quatro canais, em 16 horas, no Estúdio B da Gazeta, na avenida Paulista, quando Amado tinha 23 anos, o álbum é um clássico sui generis de samba-jazz em plena era fusion, com suas canções intensas e belas, políticas e sensíveis, e a participação de bambas do improviso brasileiro como o baterista Edison Machado, o pianista Mozar Terra, o flautista Ion Muniz e o percussionista baiano Anunciação.

Lançado com poucas cópias e pouco distribuído, sem críticas em jornal ou execuções em rádio, jamais apresentado ao vivo, o álbum logo espalhou-se como lenda entre apaixonados por discos com alma. Quarenta anos depois, como um segredo que se revela aos poucos, continua inspirando músicos, cantores, compositores, pesquisadores, DJs, colecionadores de vinil e baixadores de música, em conversas, audições, cópias passadas de mão em mão e por incontáveis blogs e sites, eterna boa nova, à frente de sua época e fora de seu tempo cronológico, som atemporal.

Nos dias 16 e 17 de fevereiro de 2013, pela primeira vez, o álbum é apresentado ao vivo, trazendo sua música e ideias para novos contextos, com direção artística de Ronaldo Evangelista e reinterpretação das canções de Amado por Luisa Maita e os convidados de voz grave e suingue sério Ed Motta, Tiganá Santana, Bruno Morais, Curumin e BNegão, em um ambiente jazzístico com acompanhamento do sexteto MP6, formado por Marcos Paiva (contrabaixo e direção musical), Edinho Santana (piano), Daniel de Paula (bateria), Daniel D’Alcântara (trompete), Jorginho Neto (trombone), Cássio Ferreira (sax alto) e participação de Chrystian Galante (percussão), do maestro Laércio de Freitas (piano) e o irmão de Amado, Marcelo Maita (fender rhodes).

Nascido no Bixiga, Amado cresceu vendo a Vai-Vai passar na porta de sua casa. Com ouvido abençoado, noção harmônica sofisticada e voz mágica, desde adolescente tocava violão, cantava, compunha sambas especiais e temas evoluídos, fã de John Coltrane e Miles Davis, Tom Jobim e Moacir Santos. Mestre do ritmo, depois de uma temporada em Paris em 1975, Amado começou a tocar percussão e em pouco tempo virou um dos principais bateristas da cena jazz de SP. Entre o Olimpo e a rua, o solo improvisado e o cordão passando pelo Bixiga, Amado deixou para nós um LP obra-prima, um punhado de incríveis canções inéditas, participações em alguns discos como baterista e mil histórias de amizade, sons, inspiração, carinho, amor. Pequena obra gloriosa, grande ser humano.

Rum & Coca-Cola – Brazilian Mambo Merengue Cha Cha Cha 1955-1966

Mix nova, especialmente para o coletivo inglês Sofrito, representando a crew Veneno Soundsystem, compilando pianos quentes, solos de flauta e trombone, percussões pesadas, congas, bongôs, timbales, maracas, tumbao grooves, merengues e cha cha chas, composições nacionais inspiradas na onda latina, versões de clássicos cubanos por orquestras cariocas e paulistas, retrato brasileiro do efeito do mambo no mundo de meados dos anos 50 ao começo dos 60. A bailar, play abaixo, MP3 por aqui.

Rum & Coca Cola – Brazliian Mambo & Cha Cha (Ronaldo Evangelista, Veneno Soundsystem) by Sofrito on Mixcloud

Mambo is not a Brazilian rhythm. Brazilian people don’t speak spanish. Afrocuban percussion is different from the traditional macumba and samba ones in Brazil, but in common they have the same roots. Through this roots, the language comes naturally to the bamba percussionists in Brazil’s hills. If the whole world was going with the mambo craze in the 50s and learning its rhythm lessons for its own lexicons, surely in Brazil it couldn’t be different. Perez Prado was a star, Mongo Santamaria was recording brazilian tunes in New York, every fancy orchestra in Rio de Janeiro and São Paulo had a few cha cha chas in its repertoire, not rarely the dancers’ favorites. Through early ten inches and rare 45s, occasional vocal star, orchestras and small combos LPs, versions and originals, we get a glimpse of the smoky, velvet-y, red-lighted, mirror-adorned brazilian clubs with heated live music and elegant-dressed dancing audience. Eighteen unfairly forgotten jewels, tropical Brazil.

Blindfold Test para Gene Lees

Luiz Orlando Carneiro coloca Gene Lees para brincar de cabra-cega, recorte do Jornal do Brasil, 20 de junho de 1962.

Faixa a faixa: Lost Sessions do Marcos Valle, 1966

Já chegou à mão dos mais inteirados a caixa Tudo, com a discografia de Marcos Valle na gravadora Odeon (hoje EMI) entre 1963 e 1974. Como sabido, um CD bônus traz um disco até hoje inédito, gravado em 1966 e apenas parcialmente com a voz de Valle, na prática pérola instrumental sessentista. Ouvindo o disco com sede dos arranjos de Eumir Deodato – que fez também os discos imediatamente anteriores e posteriores de Valle -, acompanho com anotações faixa a faixa, logo abaixo.

Os Grilos
Como quase todas as faixas do “álbum” na base dos dois minutos, é só o necessário pra um clássico: prenúncio de trompetes, groove de baixo, violão e cordas entrando perfeitos, a melodia irresistível cantada por Valle. O balanço de piano do final e o trompete com surdina que acompanha o canto ficam ainda mais brilhantes ao ouvido na versão instrumental de bônus no fim do CD. Foi lançada, ao lado de três outras faixas deste disco, em um compacto na época.

Uma lágrima
Depois do começo com cordas e metais, entra o violão de balanço bossa nova onde certamente estaria a voz. Parece pouco, mas o groove de baixo e bateria que entra quase ao um minuto é perfeito, com uma bela cama de cordas e acordes tranquilos de sopros. A única totalmente inédita do disco é a que mais soa como curiosidade, janela para o processo de criação, espaços vazios onde estaria a melodia desconhecida.

Lá eu não vou
Grande balanço de violão, baixo e bateria, levado por ataque de sopros e cordas. O que potencialmente seria uma das mais marcantes do LP que não houve virou nota de rodapé de Marcos Valle, aqui um lado B discreto samba-jazz, esquecida pelo autor enquanto regravada no terceiro LP de Claudete Soares, em 67.

Batucada surgiu
Música muito conhecida de Marcos Valle, mas nem tanto nessa versão original, lançada só no compacto mencionado e agora como parte da sequência original do álbum não lançado. A sugestividade dos sopros, o suingue de violão e detalhes de piano, o balanço da melodia: um clássico regravado em várias versões, muitas instrumentais. Dá pra entender ouvindo a perfeição do arranjo instrumental envolvendo a voz, e também perfeito na versão sem voz – faixa-bônus do CD bônus. Fazer samba é não morrer.

Primeira solidão
Outra que soa como curiosidade, sem a voz de Valle para acompanhar a base de violão bossa nova e o arranjo sem muitos elementos extras além das caídas orquestrais, cordas e flautas e trompetes distantes, bossa lenta. Gravada, como canção, afinal, no mesmo 1966 pel’Os Cariocas, no álbum Arte/Vozes.

O amor é chama
Piano moderno e violino belo e simples, baixo e bateria jazzísticos, bossa tão elegante que mesmo já assim sem voz foi lançada no compacto com “Grilos” – violão e piano tinindo e um curtíssimo e lindo solo do que soa como uma aveludade trompa ou um flugelhorn.

É preciso cantar
É ouvir os sopros samba-jazz da introdução se encaixando perfeitos com a melodia que Valle logo entra cantando pra perceber que não dá pra subestimar os elementos que ouvimos dentro de arranjos tão ricos – como são exatos os breves comentários instrumentais por todas as composições. E não esquece: é um defeito ser sentimental.

Pensa
Levado por dedilhado de guitarra e clima pianinho, pouco depois do um minuto a dinâmica levanta para receber um solo de sax, que leva a faixa até o final. Teria ficado lindo Valle cantando solo no começo e talvez duetando com o sax na segunda parte. Dá pra imaginar ouvindo a versão lançada da canção um ano antes pela cantora Luiza, com arranjo de Moacir Santos.

Mais vale uma canção
Sem a melodia principal, os acordes de sopros nos contracantos e curtos solos de piano ganham ares de protagonista e a levada pra frente de bateria e violão transformam a faixa instrumental em um hit perdido do samba-jazz, talvez até melhor assim sem voz. Pra checar, no mesmo ano Os Cariocas gravaram também essa canção no LP Passaporte.

Lenda
Linha grandiosa de cordas e sopros suaves anunciam o que certamente seria uma dessas canções de Marcos que se desenvolvem tranquilamente, com melodia perfeita e letra de ecoar na cabeça. Sem dúvida: só ouvir, em 1971 Cassiano gravou a canção lindamente no álbum Imagem e Soul. Aqui ainda sem voz, com breves interjeições de sax e um riff de cordas e trompete com surdina pontuando o refrão.

Se você soubesse
Riff de cordas e ritmo à broadway, com ataque de sopros samba-jazz. O violão, sem a voz por cima, leva um balanço tão bom que não decepciona quando ganha o primeiro plano. Os breves comentários de trompete e sopros e cordas e viradas de bateria garantem o resto da dinâmica.

Quarteto de Stan Getz + Flora Purim (Paris, 1969)

Flora Purim começando a carreira internacional e Stan Getz já veterano da música brasileira jazzificada para o mundo, encontro em preto e branco para a TV francesa em 1969, “Deixa a nega sambar”, o quarteto do saxofonista-tenor formado por Stanley Cowell no piano, Miroslav Vitous no contrabaixo e Jack DeJohnette na bateria. Flora linda de vestido hippie e cabelo à anos sessenta, mandando ver na voz firme e suave e no balanço de violão. A sandália dela ficou furada de tanto sambar.

prisma harmônico

Johnny Alf, em 1952 aos 23 anos, virou o pianista fixo da Cantina do César de Alencar, point boêmio da Copacabana da época, frequentada por João Donato, Nora Ney, Dick Farney e um João Gilberto ainda de vozeirão. Trecho abaixo, de Música Popular Brasileira, livro do Zuza de 1976, Johnny explica o jazz, a bossa nova, contratempo, balanço e conta de alguns momentos cruciais para o desenvolvimento de toda a música na segunda metade do século XX.

No jazz o pianista quando faz o acompanhamento, nunca toca os acordes marcando os tempos: o pianista de jazz fica cercando o solista naquele prisma harmônico da música, apenas nas passagens necessárias. A música é que orienta a ele, e ele, por sua vez, ajuda harmonicamente o solista. Não há uma marcação certa, regular, mas uma espontaneidade rítmica do pianista em função da harmonia. A batida da Bossa Nova tem justamente um pouco disso porque no caso de um cantor que se apresenta só com violão, ele se utiliza do instrumento como um cerco para suz voz, como o pianista e o solista de jazz. E assim a marcação em contratempo resulta num balanço diferente. Esse balanço não havia na música tradicional que era muito mais pesada. O sincopado da Bossa Nova deu uma espécie de identidade ao movimento.

Eu pude explicar facilmente porque esse cerco era uma coisa que eu fazia: eu tinha justamente mania de harmonizar e me acompanhar não marcando. O João Gilberto ia muito à Cantina do César de Alencar e ficava horas e horas do meu lado, me vendo tocar e se entusiasmava com o meu modo de acompanhar, isso eu me lembro bem. Cantando ele já tinha uma divisão bem afastada do habitual e eu me sentia muito bem acompanhando ele, principalmente harmonicamente: o que eu fizesse, não tinha problema. Dessa intimidade, pode ter se dado alguma idéia.

Há muitas músicas inéditas minhas que ele sabe.

Sambossa 5

Humberto Clayber, contrabaixista vindo do Sambalanço Trio, ali em 1965 mesmo. Kuntz Naegelle, sax e líder d’Os Copacabana nos anos 50 e em 65 também gravando no Sabadabada com Erlon Chaves. José Resala aka Turquinho, com seu bada-BAM, lenda da bateria em São Paulo desde o tempo das orquestras de baile. Luiz Mello, aluno de Moacir Santos, pianista de toque elegante e profundo, depois no Milton Banana Trio. Magno -Maguinho- D’Alcântara, trompete preza, baluarte do primeiro clássico paulista de samba-jazz, Projeção, e logo menos tocando no RC-7. Sambossa 5, melhor conjunto samba-jazz de São Paulo, standards MPM e temas originais e formação de quinteto, Horace Silver power: piano-baixo-bateria mais sax-trompete. Um disco em 1965, Som Maior. O segundo, Zero Hora, 1966, RCA Victor.