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João Gilberto disco-a-disco

Onze álbuns gravados em estúdio e metade disso ao vivo – cinco e meio. Menos de 17 discos de registro do som que tanto impacto causa na música há 50 anos: a voz e violão de João Gilberto. Mais de cinco décadas depois, o assombro e a influência que a arte de João Gilberto ainda inspira são os mesmos de quando lançou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1959. João Gilberto já sabia tudo: constantemente reinventando e evoluindo suas canções e interpretações, toda sua obra é lida como a evolução de uma sonoridade única, elaboradamente simples e infinitamente sofisticada. Logo abaixo (originalmente para o Uol em 2011, nos 80 anos de João), sua discografia comentada, do primeiro disco, lançado em 1959, até o mais recente, de 2004.


“Chega de Saudade” (1959)

Depois de participar do disco “Canção do Amor Demais” (de Elizeth Cardoso) e lançar dois 78 rotações em 1958, João Gilberto chegou à modernidade dos LPs ajudando a inventá-la. A voz íntima do ouvido, o som de violão absolutamente claro, a abordagem ao mesmo tempo casual e lapidada: eram muitos elementos novos que somavam àquele núcleo de criação exemplar. Além da remodernização de antigos sambas da década de 40 – um Dorival Caymmi, um Marino Pinto, dois Ary Barrosos -, contribui muito com o sabor de novidade a presença do produtor Tom Jobim, com três canções, seus pianos discretos e seus arranjos cheios de pequenos detalhes nas cordas e sopros, como contracantos de João.

Grande momento: “Morena boca de ouro”, releitura de um sucesso de 1941 de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas, aqui com o piano de Tom Jobim e a economia do arranjo impressionantes até hoje.


“O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960)

O segundo LP de João Gilberto já começava ousado na capa, em preto-e-branco solarizado, criada por Cesar Villela, que em breve faria as famosas capas da gravadora Elenco. Gravado pouco mais de seis meses depois do primeiro disco, e novamente com direção musical de Tom Jobim, o álbum trazia no repertório seis novas canções do produtor, mais um Caymmi e um antigo sucesso nunca gravado do tempo de conjuntos vocais: “O Pato”.

Grande momento: Abrindo com vocalises que reinventam as harmonias da versão original do conjunto vocal Anjos do Inferno, de 1945, “Doralice”, de Caymmi, ganha versão definitiva com João Gilberto, em nada além de um minuto e 29 segundos. De acompanhamento, além de seu violão e leve percussão, a modernidade do piano delicado e cristalino de Tom Jobim e breves comentários da flauta no contraponto.


“João Gilberto” (1961)

No mesmo fôlego, um ano depois foi gravado o terceiro LP, homônimo, de João Gilberto. Em algumas faixas, acompanhado do conjunto do pianista Walter Wanderley, todo o resto novamente com Tom. Além de três novas do produtor, o repertório continua lembrando antigos sambas dos anos 40, desta vez com dois Caymmis, um Geraldo Pereira e um Bide/Marçal.

Grande momento: “A primeira vez”, samba de Bide e Marçal cantado por Orlando Silva em 1939, surge em versão quase invertida: o volume do original é traduzido em arranjo quase solo de voz-e-violão, apenas com o piano ocasional de Tom.


“Getz/Gilberto” (1964)

E então, o mundo descobriu. Gravado em Nova York ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz (e com Tom ao piano), o álbum foi lançado pela gravadora de jazz Verve e se tornou famoso em todo o planeta, ganhando cinco prêmios Grammy. Cantada pela mulher de João, Astrud, “Girl from Ipanema” saiu em single (sem a voz de João) e vendeu mais de um milhão de cópias – a canção se tornou uma das mais regravadas da história.

Grande momento: O máximo de sublime de João em disco se revela em sua interpretação de “Pra machucar meu coração”, do então recém-falecido Ary Barroso, que João muito admirava e havia acabado de conhecer. Perfeição no piano de Tom, sax de Getz, baixo e bateria de Tião Neto e Milton Banana, e João, no seu mais suave e musical.


“Getz/Gilberto II” (1964)

O primeiro disco ao vivo (ou meio) de João, gravado no Carnegie Hall em outubro de 1964, lado B de um LP com Stan Getz do outro. Na versão em CD, cinco faixas bônus trazem João e Getz juntos, com Astrud.

Grande momento: Apesar de não manter a aura de magia do encontro em estúdio, “Você e eu” ao vivo é mais um interessante encontro do violão ritmado do João com o sax jazzístico de Getz e a voz vaporosa de Astrud.


“En Mexico” (1970)

Gravado durante temporada de João Gilberto no México, como já fica claro no título, o álbum só foi gravado seis anos depois do último, e desta vez com arranjos de Oscar Castro Neves. Entre as novidades do repertório, três boleros, dois Jobins, duas autorais sem letra e uma composição de seu amigo João Donato gravada dois anos antes por Sergio Mendes: “The Frog”.

Grande momento: João canta tão próximo do microfone que sua respiração funde-se com sua voz com inigualável efeito de intimidade com o ouvinte em “Astronauta” (também conhecida como “Samba da pergunta”), só com seu violão, piano pontuando e etéreas cordas ao fundo.


“João Gilberto” (1973)

O auge do minimalismo zen de João, gravado novamente em Nova York. Desta vez acompanhado apenas do percussionista Sonny Carr e, em uma faixa, da voz de sua então nova esposa, Miúcha. Além de um Jobim, três faixas sem letra e mais alguns sambas antigos, a grande novidade são canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Grande momento: É irresistível acompanhar as harmonias vocais que João cria em contracanto com Miúcha em “Isaura”, sua versão do samba de 1945 de Francisco Alves. João, virtuose dos detalhes.


“Best of Two Worlds” (1976)

Com repertório baseado no chamado “álbum branco”, de três anos antes, traz novo encontro com Stan Getz, mais de dez anos depois do “Getz/Gilberto” original. Duas faixas são cantadas solo por Miúcha e uma novidade do repertório é “Retrato em Branco e Preto”, parceria do irmão da noiva, Chico Buarque, com Tom Jobim.

Grande momento: Cantada com serenidade e emoção por João, “Ligia” é uma novidade de Tom Jobim até hoje: João canta a primeira versão da letra, diferente da que depois ficou mais conhecida, com retoques de Chico Buarque. Getz aparece com dois solos dobrados, sobrepostos com melodias diferentes.

(Bônus momento: “É preciso perdoar“.)


“Amoroso” (1977)

Trazendo composições em inglês, italiano e espanhol e arranjos de orquestra do alemão Claus Ogerman – que havia cuidado da orquestra nos discos solo de Tom Jobim -, “Amoroso” foi desde seu lançamento recebido como momento de gala para João e é até hoje um de seus álbuns mais conceituados entre jazzistas.

Grande momento: Não é nem preciso entender a letra em italiano de “Estate” para ficar tocado com sua sensibilidade. Lendo-se, então, o “verão que criou nosso amor” e agora é um “legado de dor”, emocionante.


“João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” (1980)

Segundo disco ao vivo de João, de um especial de TV da Rede Globo com plateia, orquestra e participações de sua filha Bebel Gilberto (então com 14 anos) e Rita Lee. Johnny Alf e Lamartine Babo são surpresas do repertório.

Grande momento: Antiga marchinha de 1939 de Lamartine Babo, cantada por Mário Reis em dueto com Mariah, “Jou Jou Balangandãs” vira pura bossa com a voz da tropicalista Rita Lee, interpretações em pura doçura.


“Brasil” (1981)

Gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia: o violão de João, comentários dramáticos nas cordas e percussões e as quatro vozes se fundindo – Bethânia canta suave como nunca antes ou depois. Quase um disco conceitual sobre a Bahia, com versões de Caymmi, Ary Barroso e, novidade, Os Tincoãs.

Grande momento: Versão do standard americano “All of me” pelo letrista Haroldo Barbosa, “Disse alguém” é uma pérola, com João fazendo uma adaptação jazzística da sua batida ao violão, pequenas alterações na melodia e toda uma nova cor nas imagens em português.


“Ao Vivo em Montreux” (1986)

Terceiro disco ao vivo e um dos melhores momentos de João no palco, foi gravado – todo de voz e violão – no famoso festival de jazz suíço em 1985 e lançado em LP duplo, depois CD simples com duas músicas a menos.

Grande momento: O antigo sucesso de 1948 de Haroldo Barbosa na voz d’Os Cariocas, “Adeus América”, ganha todo um novo contexto na voz mântrica de João Gilberto, que tanto tempo morou nos Estados Unidos e havia retornado ao Brasil há pouco.


“João” (1991)

Com arranjos de cordas do americano Clare Fischer sobre a base de violão e voz de João, o disco não atinge os mesmos níveis de Amoroso, mas tem ótimo repertório, com Noel Rosa, Cole Porter, bolero, chanson.

Grande momento: João parece ter total controle sobre como fazer o tempo parar, andar para frente ou para trás em seus ritmos de violão e andamentos vocais. Em “Eu sambo mesmo”, de Janet de Almeida, cantada pelos Anjos do Inferno em 1946, o sublime é atingido já nos primeiros segundos.


“Eu Sei Que Vou Te Amar” (1994)

O quarto disco ao vivo de João e o mais sem graça, com mixagem imperfeita, edição brusca e repertório sem surpresas. “Você não sabe amar” é boa novidade.

Grande momento: “Lá vem a baiana”, de Caymmi, sempre perfeito na voz de João.


“Live at Umbria Jazz Fest” (1996/2002)

Quinto disco ao vivo de João, gravado na Itália em 1996 e lançado em CD em 2002. Mais atualizações de canções de todas as fases da carreira de João.

Grande momento: “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, tão conhecida e sempre tão nova com João.


“Voz e Violão” (1999)

Produzido por Caetano Veloso, foi o último de estúdio gravado por João e o único inteiramente só de voz e violão. O repertório recupera sambas antigos de Bororó, Herivelto Martins, uma raridade de Tom Jobim, dois Caetanos e novas lapidações de “Chega de saudade” e “Desafinado”, cada vez mais sintéticas.

Grande momento: Dessa vez João Gilberto não foi tão longe, apenas 1980, para encontrar uma maravilha. “Você vai ver” foi lançada no álbum Terra Brasilis, de Tom Jobim, como uma elegante canção de fim de amor, aqui transformada em pura candura.


“In Tokyo” (2004)

País que cultua João Gilberto talvez até mais que o Brasil e recebe visitas frequentes para turnês, o Japão rendeu o mais recente disco ao vivo de João, sexto de sua carreira. Gravado em 2004, João tinha então 73 anos e faz ótima performance, tranquila e depurada.

Grande momento: Aracy de Almeida cantava “Louco” de Wilson Batista em 1946, e desde os anos 50 João a traz em seu repertório, apesar de nunca tê-la gravada em estúdio. Canta ao vivo a história do louco que chora e anda pelas ruas, transformando-se até num vagabundo.

Zé Maconha, mas pode chamar de João Gilberto

Antes de gravar “Corcovado”, em 1960, João Gilberto fez uma sugestão ao compositor Tom Jobim, prontamente acatada: mudar as primeiras palavras da canção de “um cigarro, um violão” para “um cantinho, um violão”. Segundo Ruy Castro no livro Chega de Saudade, ali João já não fumava nada. É que, segundo a mesma fonte, João passou boa parte da década de 50, nos tempos pré-bossa nova em que frequentava com João Donato a boate do Hotel Plaza para ouvir Johnny Alf ao piano, sob a influência da então ainda não criminalizada marijuana – a ponto de Carlinhos Lyra lembrá-lo pelo apelido Zé Maconha.

Talvez o vizinho de João Gilberto no Leblon não tenha lido o livro de Ruy e não saiba que ele parou com isso há 40 anos, o que explicaria o trecho abaixo da divertida (ainda que de um voyerismo algo perturbador) matéria publicada no iG ontem:

“Deve ter um mês mais ou menos que um morador foi até lá e bateu tanto que quase pôs a porta abaixo! O problema é a maconha. Parece que ele fuma e o cheiro entra pela janela da casa do rapaz. Aí os dois ficaram se xingando”, contou uma vizinha que preferiu não se identificar. O vizinho ameaçou chamar a polícia. Ao porteiro do prédio, João afirmou, através do interfone, que em sua casa faz o que quiser. E questionou: “E isso (fumar maconha) é crime?”. O porteiro preferiu não tomar partido e apenas comunicou a ameaça de que o vizinho iria telefonar para a polícia.

§Quando a lenda se tornar maior que a verdade, publique-se o mito – especialmente em se tratando de João Gilberto, tema de folclore há tanto tempo quanto de adoração. Agora… vai dizer que você não queria ouvir os sons criados pelos jovens Joões Gilberto e Donato de cuca fresca, 1954?

prisma harmônico

Johnny Alf, em 1952 aos 23 anos, virou o pianista fixo da Cantina do César de Alencar, point boêmio da Copacabana da época, frequentada por João Donato, Nora Ney, Dick Farney e um João Gilberto ainda de vozeirão. Trecho abaixo, de Música Popular Brasileira, livro do Zuza de 1976, Johnny explica o jazz, a bossa nova, contratempo, balanço e conta de alguns momentos cruciais para o desenvolvimento de toda a música na segunda metade do século XX.

No jazz o pianista quando faz o acompanhamento, nunca toca os acordes marcando os tempos: o pianista de jazz fica cercando o solista naquele prisma harmônico da música, apenas nas passagens necessárias. A música é que orienta a ele, e ele, por sua vez, ajuda harmonicamente o solista. Não há uma marcação certa, regular, mas uma espontaneidade rítmica do pianista em função da harmonia. A batida da Bossa Nova tem justamente um pouco disso porque no caso de um cantor que se apresenta só com violão, ele se utiliza do instrumento como um cerco para suz voz, como o pianista e o solista de jazz. E assim a marcação em contratempo resulta num balanço diferente. Esse balanço não havia na música tradicional que era muito mais pesada. O sincopado da Bossa Nova deu uma espécie de identidade ao movimento.

Eu pude explicar facilmente porque esse cerco era uma coisa que eu fazia: eu tinha justamente mania de harmonizar e me acompanhar não marcando. O João Gilberto ia muito à Cantina do César de Alencar e ficava horas e horas do meu lado, me vendo tocar e se entusiasmava com o meu modo de acompanhar, isso eu me lembro bem. Cantando ele já tinha uma divisão bem afastada do habitual e eu me sentia muito bem acompanhando ele, principalmente harmonicamente: o que eu fizesse, não tinha problema. Dessa intimidade, pode ter se dado alguma idéia.

Há muitas músicas inéditas minhas que ele sabe.

tendo isso tudo eu não preciso de mais nada, é claro

Em 1955, Johnny Alf gravou um 78 RPM com seu trio e provocou uma pequena comoção entre alguns bem aventurados: “Rapaz de bem“, um samba descolado tocado como se fosse o King Cole Trio, com melodia muito particular e interpretação à Sarah Vaughan, como um Dick Farney menos almofadinha, com a sensibilidade à flor da pele, endiabrado mas suave. A letra, esperta e com o leve hedonismo jovem dos antigos sambas de Noel, Custódio, Geraldo, Carmen, somado com a sofisticação consciente de Gershwin e do jazz dos anos 50. Aquilo invadiu o inconsciente coletivo de toda a bossa nova e foi essencial na equação construída sobre as bases de Tom e João mas, como eles e Donato, existe à parte.

você bem sabe eu sou um rapaz de bem
e a minha onda é do vai e vem
pois com as pessoas que eu bem tratar
eu qualquer dia posso me arrumar
vê se mora

no meu preparo intelectual
é o trabalho a pior moral
não sendo a minha apresentação
o meu dinheiro só de arrumação

eu tenho casa, tenho comida
não passo fome, graças a Deus
e no esporte eu sou de morte
tendo isso tudo eu não preciso de mais nada
é claro

se a luz do sol vem me trazer calor
e a luz da lua vem trazer amor
tudo de graça a natureza dá
pra que que eu quero trabalhar?

talvez quem sabe o inesperado faça uma surpresa

Morreu ontem Johnny Alf, o mais low profile dos compositores e cantores brasileiros. Não foi uma surpresa, exceto para quem não o conhecia. Há alguns anos enfraquecido por um câncer na próstata – boa parte deles passados em longas internações -, vinha fazendo shows esporádicos e sempre tratados como Grande Volta, no fundo algo morbidamente subentendidos como Pode Ser o Último, até que foi.

O que você vai cansar de ler é que Johnny Alf era precursor da bossa nova, assim, nestas mesmas palavras. Mas isso é diminuí-lo, como entendê-lo como menor que a bossa nova, um passo antes. Johnny era maior que sua época e maior que movimentos musicais oportunos. Cantor da noite, pianista elegante de linguagem própria, compositor com estilo plenamente pessoal, usava a voz como ninguém no Brasil. Moderno nas letras, nas inflexões da voz, nas melodias, nas ousadias de composição, no piano tão pouco gravado. Mais que moderno, o som de Johnny sempre foi perene.

Sobre Johnny, certa vez João Donato me disse: “o que aprendi de bom, aprendi com ele”. E não falava só de música: “Johnny me ensinava não como uma teoria, mas um estado de espírito”. Sempre tranqüilo, pelos momentos bons ou nem tanto, Johnny Alf era a suprema humildade. Já Alfredo José da Silva, sua identidade secreta, era o extremo da timidez. Numa realidade paralela, talvez a nossa, os hits de Johnny dominaram: “Eu e a brisa”, “Ilusão à tôa”, “O que é amar”, “Fim de semana em Eldorado”, “Céu e mar”, “Seu Chopin, desculpe”. Pode ouvir e soar tão atual e pra frente e quase estranho de tão particular quanto na época. Johnny se vai e sua memória continua brilhando especial, para poucos ou muitos.

you hear they calling me rapaz de bem

Dia desses li na Folha coluna do Ruy Castro, com título Rapaz de Bem, sobre Johnny Alf – que acabou de completar 80 anos ontem. Fiquei pensando no Johnny Alf, Ruy Castro, Folha, Rapaz de Bem, lembrei: escrevi matéria pra mesma Folha um tempo atrás sobre Johnny com mesmo título, aliás com aspas do Ruy Castro. // Títulos óbvios à parte (deve ter havido outras 297 matérias com a mesma chamada antes da minha e do Ruy), Johnny Alf é realmente algo mais, provavelmente o maior jazz singer popular brasileiro. A sofisticação do samba dos anos 40 chegando à década seguinte querendo se modernizar, com sotaques de Sarah Vaughan e Nat King Cole, pra citar dois que ele próprio me contou ouvir muito e emprestar o repertório pra cantar na noite.

Aproveitando o embalo, Rapaz de Bem, matéria que escrevi pra Folha quando Johnny Alf lançou Mais Um Som, primeiro disco de inéditas em 28 anos – e um dos únicos em que é gravado ao piano. Pro texto, ouvi o Johnny, conversei com Ruy Castro e resolvi ligar pro Donato – que mandou um fristáile lindo que fiquei feliz de manter no texto final.

Depois continua que tem outra dessas e um doce pra quem chegar até o final.

Rapaz de bem

Vinte e oito anos. Parece inacreditável, mas é o tempo desde a última vez em que o cantor, pianista e compositor Johnny Alf lançou no Brasil um álbum novo, gravado em estúdio, de músicas inéditas. “Desbunde Total”, de 1978, foi o último -desde então, apenas discos ao vivo, regravações com convidados, tributos a outros compositores. Mesmo assim, pouquíssimos, com intervalos enormes entre eles. Muito pouco para um músico do tamanho de Johnny Alf.

A boa notícia é “Mais Um Som”, gravado em 2002, lançado no Japão em 2004, recém-desembarcado no Brasil em edição nacional: a aguardada quebra do jejum, com 15 composições inéditas na voz do autor. Amanhã acontece show de lançamento do disco, com o mesmo quinteto que acompanha Alf há década e meia e com quem gravou o álbum.

Realizado pelo produtor japonês Jun Itabashi, o disco surgiu com a proposta de se fazer um CD com músicas novas, sem os hits de sempre da história do compositor, e com sonoridade acústica lembrando álbuns dos anos 60.

O formato é ideal, e o disco já nasce como um dos melhores da discografia de Alf -por ter sido gravado com pequena formação, é perfeito para se ouvir em detalhes seu piano, sua voz, suas composições, a improvisação dos músicos que o acompanham.

Ele fazia antes, diz Ruy Castro
“Cada disco novo de Johnny Alf é um acontecimento na música popular brasileira”, observa o escritor e jornalista Ruy Castro, autor dos livros sobre a bossa nova “Chega de Saudade” e “A Onda que se Ergueu no Mar”, este último com capítulo dedicado a Alf.

Ruy Castro lembra a importância do músico: “O Johnny Alf, sem dúvida, foi um grande precursor da bossa nova, na década de 50. É um processo que já vinha desde os anos 40, pelo menos -a bossa nova era apenas uma inovação em cima de uma bossa brasileira que já existia, a conclusão de um processo evolutivo. E o Johnny Alf, assim como o João Donato, já era bastante evoluído dentro desse processo todo -ou seja, ele já era uma bossa nova dez anos antes da bossa nova”.

O próprio João Donato, também pianista, se lembra da época e do que significava para ele Johnny Alf. “No tempo que a gente era mais moderno, mais garoto, era uma troca de informações entre nós mesmos e quem podia informar as coisas para gente era Johnny Alf. Ele teve papel fundamental no desenvolvimento harmônico da minha música, me ensinava não como uma teoria, mas um estado de espírito. Você sente no resultado prático e oculto da música que ela não tem números, tem apenas um efeito sobre a sua alma. Com um som você consegue ficar alegre ou triste, enraivecido ou amoroso. Se você consegue sentir um som, ele tem uma importância mais que fundamental, é vital. E o que eu aprendi de bom, aprendi com Johnny Alf. Dizem que nosso som era moderno. Continua sendo! Uma vez moderno, sempre moderno. Isso independentemente de uma data cronológica. O som é moderno porque é bonito, sempre foi e sempre será. Não precisa passar por uma época ou outra.”

Influência do jazz
Johnny Alf, que continua moderno hoje, se lembra de como nasceu aquele som. “Eu ouvia muito Sarah Vaughan e Nat King Cole, cantava muito o repertório deles na boate. Aí, aprendi a usar o jazz como cobertura na minha música. Eu fazia aquilo que eu tinha adquirido no tempo, com música americana, compositores antigos que já tinham uma harmonia aperfeiçoada, Garoto, Custódio Mesquita, [Dorival] Caymmi. Na época, havia um interesse comum entre eu, Donato, Tom [Jobim] em fazer algo moderno. Mas eu não pensava no que ia fazer, tocava e saía naturalmente.”

Tão naturalmente que aquilo se tornou o primeiro ponto definitivo de mudança, o norte de todos os músicos que fariam a revolução alguns anos depois. Desde 1954, Johnny Alf se apresentava na boate do Hotel Plaza, no Rio Janeiro, e parte do público que batia cartão ali para vê-lo era formado por Tom Jobim, João Gilberto, João Donato, Carlos Lyra e Roberto Menescal. No ano seguinte, Alf se mudaria para São Paulo e por aqui ficaria definitivamente, gravando seus primeiros LPs no começo da década seguinte, após alguns influentes 78 rotações.

Sempre cult, continuou lançando discos e fazendo shows, ou pelo menos sendo genial, mesmo com a produção baixa. Agora, hora de comemorar a volta triunfal e não deixar o ritmo cair.

Viagem no tempo pra um pouco antes, ainda não havia Mais Um Som, mas Johnny fazia show e valia pauta. Repara na história do disco que ouvi dele e usei pra concluir o texto.

Johnny Alf retorna ao palco com sua melodia sinuosa

Estilista fundamental da música brasileira, responsável pelas primeiras revoluções que dariam origem à bossa nova, o cantor e pianista Johnny Alf oferece amanhã e sábado chance rara de ser visto e ouvido em pessoa, dentro do projeto Toca Brasil, do Itaú Cultural. Com poucos discos lançados -a maioria deles fora de catálogo- e sem fazer apresentações freqüentes, Alf anda quase esquecido, apesar do status cult que geralmente vem associado a seu nome.

Atualmente com 75 anos, o músico diz que segue produzindo e continua compondo, mas não sabe explicar o motivo de não lançar álbum novo no mercado brasileiro há cinco anos. “A música mudou muito, não sei se o meu estilo agrada às pessoas de hoje”, esquiva-se. Uma das maiores razões, sabe-se, é sua personalidade extremamente tímida e introvertida, que o torna reservado e dono do seu próprio ritmo. “Hoje em dia os discos são gravados muito rapidamente, não gosto disso. Prefiro fazer tudo mais devagar, escolher bem o repertório, pensar nos arranjos”, explicita.

Músico da noite desde meados dos anos 50, costumava ter em seu público cativo admiradores como Tom Jobim, João Gilberto e Baden Powell. Compositor muito influenciado pelo jazz, lançou seu primeiro compacto de 78 rotações em 1952 e por toda a década criou clássicos de melodia sinuosa e harmonia sofisticada -como “Eu e a Brisa”, sua canção mais famosa- que se tornaram referências essenciais para os músicos que depois inventariam a modernidade da bossa nos anos 60.

Reverência
Nascido Alfredo José da Silva no Rio de Janeiro, Johnny Alf em 1955 veio morar em São Paulo, onde vive até hoje. No auge da música popular moderna, quando era reverenciado por toda a geração imediatamente posterior à sua, dividiu seu tempo entre as duas cidades. Como em 1962, quando foi ao Rio regularizar sua carteira de músico profissional e acabou passando temporada de jam sessions com os músicos de samba-jazz do Beco das Garrafas.

“Nós” (EMI, 1974) e “Desbunde Total” (Warner, 1978), produtos da mistura de samba-bossa, funk e experimentações sonoras do Brasil dos anos 70, são os dois únicos registros do Johnny Alf clássico encontráveis nas lojas hoje. Além desses, pode-se esbarrar em algum disco ao vivo dos anos 90, mas nem sinal de seus primeiros álbuns, peças-chave da bossa, ou mesmo discos mais recentes, gravados para os mercados americano e japonês, ainda inéditos.

Faz falta também, há 40 anos, um lendário LP nunca lançado, em que ele interpreta versões de standards da bossa em inglês, coisas como “Little Boat” e “One Note Samba”.

A gravação foi feita na primeira metade dos anos 60 na gravadora RCA, atual BMG. “Gosto bastante desse disco, foi muito bom fazer e o resultado saiu ótimo. Não sei por que a gravadora não editou. Talvez eles ainda lancem, não dá pra entender”.

No mesmo fôlego, apareceu aqui, nem lembro como, a exata gravação que ele comenta poucas linhas acima. Nunca li ou ouvi qualquer outra referência sobre o tal disco, então foi uma surpresa agradável ouvir – apesar da falta de excepcionalidade. A interpretação e sotaque de Johnny soam ótimos, com sua voz de caramelo à Nat Cole e brincadeiras vocais à Sarah Vaughan; mas a base é bossa nova de caixinha de música esquema linha de produção – justo, muito por conta da baixa fidelidade de gerações de cópias em cassetes ou rolos passadas adiante.

Vale pelo charme torto das versões em inglês de “Rapaz de Bem”, “Sky and Sea” e “Excuse Me Mr Chopin” (e das obrigatórias “Desafinado”, “Meditação” et cetera), nascidas do mesmo impulso que gerou discos em inglês, pela mesmo época de explosão mundial da bossa, de Carlos Lyra, Astrud Gilberto, Tom Jobim, Marcos Valle.

Doze músicas, Johnny Alf em 1963, em inglês, aqui.

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(Fotos pelo post? Eugênio Vieira, claro.)

Quintessência


Ontem, no Studio, enquanto o Gui discotecava, tava trocando idéia com o BNegão e ele me solta essa: Meirelles passou pro outro plano. Choque total, o Meirelles não achei que estivesse indo tão cedo. O cara era mestre absoluto, inventor da coisa toda e até outro dia ainda a todo vapor.
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Infelizmente não achei nenhum vídeo dele tocando seu tenor nervoso, mas nada mal esse “O Barquinho” com flauta e o trio do Dom Salvador.
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O Som, pra mim, é o grande disco brasileiro de jazz. É o disco que define o samba-jazz. É o Kind of Blue brasileiro, é o Moanin’ brasileiro, o Chega de Saudade da improvisação brasileira. É mais: é O Som. Pefeição do começo ao fim, composições, arranjos, seqüenciamento, capa, gravação, masterização, mixagem, ilha deserta. O que dizer de Quintessência, Nordeste, Solitude? E dos acompanhantes: Dom Um Romão, Tenório Jr, Manoel Gusmão, Pedro Paulo? Sem falar em todos os sons, arranjos e composições que o Meirelles espalhou em grandes discos por aí, de Jorge Ben a Sergio Mendes a Edison Machado a tantos outros.

Baixe já, aqui.

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Em 2005, quando escrevi uma matéria sobre samba-jazz pra Folha, o Meirelles foi o primeiro cara pra quem liguei, e ouvi grandes histórias.

Antes ainda, no começo de 2003, quando fui chamado pra trabalhar na revista Jazz+, a primeiríssima coisa que quis fazer foi entrevistar o Meirelles. Fui num show dele aqui em São Paulo, o cerquei depois do show, consegui um número e semana seguinte batemos longo papo, que se transformou no primeiro entrevistão da primeira edição da Jazz+.

Na época, ele tinha acabado de voltar a tocar depois de anos, seus dois primeiros discos tinham acabado de ser relançados, ele tinha feito um disco novo e – lembra? – havia até um personagem na novela das oito inspirado nele, interpretado pelo Tony Ramos.

Abaixo, versão redux da entrevista.

Como foi voltar a tocar depois de tanto tempo?

Eu fiquei sem tocar uns 10 anos, cheguei até a vender meu sax e comprar um computador. Os computadores estavam em ascensão na época, era um instrumento novo, só que era um instrumento muito solitário. Então, eu voltei a tocar por insistência dos amigos, que não se conformavam que eu tinha parado. Eu achava que não valia a pena. Você só ouvia por aí axé e pagode, não havia espaço para outra coisa. Tiraram até o rock da mídia, quem diria o samba-jazz. Não se pode brigar com o sistema. Mas aí alguns amigos insistiram, me deram um novo saxofone de presente, programaram alguns shows, isso três anos atrás. Aí eu voltei a tocar, misturando o meu repertório antigo mais alguns jazz estrangeiros clássicos. Posteriormente fui tocar no bistrô, na Modern Sound, e fiquei lá dois anos. Lá eu tocava também bastante bossa nova, porque era uma coisa bastante heterogênea, era uma loja de discos, um bistrô, eu tocava para aquele público, o que aquele público queria ouvir. Eu aprendi a ser profissional. Já estou muito velho para precisar ficar me afirmando.

E como foi o relançamento dos seus dois primeiros discos?

Os meus dois primeiros discos se tornaram muito procurados, muito raros. Eles chegavam a valer US$400 em vinil. Imagina, US$400 por um LP? Eu mesmo cheguei a vender duas cópias que eu tinha do meu primeiro disco por US$200 cada. Então eu tive várias propostas para o relançamento dos meus dois primeiros discos, várias gravadoras entravam em contato comigo querendo relançá-los, mas as propostas não eram interessantes. Até que a Dubas, pela pessoa do Ronaldo Bastos, junto com seu irmão e a Marisa Goldman, entrou em contato comigo e eu achei que a proposta era legal. Foi uma coisa de intuição mesmo. Eu vi que o interesse deles era mais do que comercial, eles tinham interesse em valorizar o produto histórico. Nós conversamos, eles concordaram com a maneira que eu queria que os discos fossem relançados e os discos saíram, com distribuição da Universal.

Eu dei muita sorte, porque eu recebi uma mídia muito forte por causa desses relançamentos. Eu não esperava que tanta gente gostasse e tivesse interesse em mim, no samba-jazz. Acabaram saindo matérias nos principais veículos, n’O Globo, no Jornal do Brasil, na Folha de S.Paulo, na Veja, eu inclusive me tornei amigo de muitos dos jornalistas que entraram em contato comigo para fazer matérias. Tudo isso ajudou muito na divulgação desses relançamentos.

E o disco novo?

Eu fiz questão de ter um produto novo, de sair do passado, eu finalmente deixei de ser um artista virtual. Toda matéria que falava de mim dizia que eu era “lendário”, que eu era “um mito”, eu achava isso um saco! Tinha todo o espectro dos anos 60 sobre mim. Eu fiquei 30 anos sem tocar uma música minha. Eu era muito radical, achava que não valia a pena. Até que voltei a tocar, vi o interesse das pessoas e surgiu a proposta da Dubas de gravar o disco novo. É muito raro alguém se dispor a bancar um disco instrumental aqui no Brasil. É mais fácil você gravar de uma forma independente, lançar por um pequeno selo sem distribuição, mas não é a mesma coisa. Nisso, o Antonio Adolfo foi pioneiro [com seu disco Feito em Casa, de 1977]. Naquela época, ninguém gravava disco instrumental. Aí ele gravou em casa, no seu home studio. Claro que a qualidade não é a mesma, e é esse o problema. Eu sempre acreditei que o profissional tem que ser valorizado, tem que ter o mínimo de qualidade para fazer as coisas. E com a Dubas foi exatamente como eu queria. Chegamos a um denominador comum, em termos de orçamento, cada parte cedeu um pouco, e foi tudo certo.

Eu tive que praticamente iniciar minha carreira novamente, na terceira idade. Então quis gravar um disco novo, com um grupo novo. Fui lá, escolhi os músicos, escolhi o estúdio, em um mês eu escrevi as músicas e os arranjos do disco novo e em três dias gravei tudo, com mais um dia para masterização. Eu passei 15 anos como músico, produtor e arranjador contratado da ODEON, então ganhei prática, gravar rápido não foi um problema.

Depois que gravei o disco novo, aí sumiu o estigma de “músico lendário”. Eu fiquei dois anos tocando no bistrô, todo mundo já sabia onde me encontrar, já me ouvia tocar. Agora eu estou na atualidade, estou satisfeito. Eu levei três anos para fazer tudo isso. Se eu tivesse pensado em voltar de verdade antes de tocar um pouco, gravar disco novo, fazer músicas novas, ter uma banda nova, as pessoas iam olhar pra mim e dizer, “mas de onde ele veio?”´

Então eu me assumi o rei do samba-jazz. Não tem o rei da bossa nova, o rei da cocada preta? Então eu sou o rei do samba-jazz. Não sobrou mais ninguém mesmo.

Agora eu parei de tocar músicas estrangeiras. Isso é uma coisa que eu achei que tinha que fazer. Todo mundo fez isso quando assumiu um papel de liderança. O Paulo Moura, o João Donato, o Johnny Alf, eles tocavam músicas estrangeiras, mas quando assumiram um papel importante dentro da música brasileira, eles pararam com as músicas estrangeiras. Não posso querer comer e guardar o bolo, não é? O artista brasileiro tem uma certa responsabilidade, tem algo a representar. Eu sempre relutei, sempre fui um profissional e não um artista, mas agora resolvi assumir. Dá muito trabalho, é seu nome ali, você tem que administrar tudo. Agora acho que estou conseguindo as coisas como quero, então vale a pena o trabalho.

Aqui no Rio tem uma meia-dúzia de lugares onde acho que vale a pena tocar, como o BNDES e o CCBB, que têm um orçamento legal e bons espaços para música instrumental. Além desses lugares só tem barzinhos, onde você ganha mal e não tem espaço pra tocar com uma formação maior do que um trio. Eu gostaria de tocar em lugares com uma estrutura boa, com a mesma dimensão de shows grandes da música brasileira. Acho que a música instrumental deveria ter esses espaços. Mas aos poucos estou conseguindo isso. Acho que estou conseguindo abrir um espaço que espero que ajude outras pessoas também.

E você já está pensando em gravar outros discos?

Eu já estou com alguns projetos para discos novos. Eu recebi um convite da Deck Disc e de um produtor japonês para gravar um disco do Meirelles e os Copa 5 junto com a Wanda Sá, e espero que isso se concretize. Se der certo, isso deve ser já em abril. A Wanda Sá tem tocado sempre lá no Japão, com o Menescal, e acho que seria uma coisa bem bacana pra gente. Mesmo porque meus discos vendem muito bem no Japão, e não só os discos da Philips. Outros discos meus que eu gravei na ODEON também saíram lá e vendem muito bem. Além disso, existe um projeto com a Dubas de gravar um disco ao vivo do Meirelles e os Copa 5. Aí a idéia é gravar numa sala legal, com os músicos com quem eu tenho tocado ao vivo, músicas do disco novo e também algumas das minhas músicas antigas, coisas do presente e do passado.

No seu show em São Paulo você disse que nesses 39 anos entre seu segundo e seu terceiro discos a sua música não mudou, o que mudou foi o público. Suas influências ainda são as mesmas?

Não, de jeito nenhum. Eu não ouço mais jazz. O jazz já perdeu todo o significado pra mim. Mas é como um alemão que vive 20 anos no Brasil e não perde o sotaque, eu nunca vou perder o sotaque do samba-jazz, faz parte da minha personalidade. Hoje em dia eu ouço cada vez mais música brasileira, mas minha formação foi no jazz. Eu tinha 23 anos, vivia jazz, ouvia o tempo inteiro o jazz americano. Aliás, acho que em São Paulo toda a turma só ouvia discos de jazz americano. Não existia samba-jazz em São Paulo, o estilo estava todo calcado no jazz americano. Naquela época, acho que o único de todos nós que já tinha um estilo definido era o Dom Um Romão, que não tinha influências americanas. Ele tocava jazz, mas era muito brasileiro. O meu estilo mesmo, dava pra perceber, era muito influenciado por quatro saxofonistas, só variava de música pra música – mas não vou te contar quem são os quatro, você tem que ouvir e descobrir.

Depois eu toquei sax alto, mas naquela época eu ainda tocava tenor. Eu acho que é muito importante a pessoa achar o estilo. Você vê essas pessoas, esses músicos que agora vão estudar nessas escolas americanas de música, aprendem determinadas coisas e ficam só repetindo aquilo, comigo isso não funciona. Eu tenho que tocar a minha emoção, a minha melodia. Esse é o estágio final do que eu gosto de fazer, e eu acho que agora eu estou conseguindo isso. Acho que o único músico que eu conheço que começou assim, achando o seu estilo de cara, foi o João Donato, ele nasceu pronto. Desde 1958 que ele toca do jeito dele, nunca mudou, sempre foi original e com uma maneira própria de tocar. Eu não, tive que correr atrás do meu estilo. Eu fui muito influenciado por ele, inclusive. Mas hoje em dia eu acho que já tenho meu estilo, meu jeito de tocar.

Como você começou sua carreira, com o Sylvio Mazzuca, tocando no Bottle’s etc, e como você chegou a tocar com o Jorge Ben?

Eu comecei a tocar em 1958, aqui no Rio de Janeiro, com o João Donato, o Johnny Alf… Depois o Johnny Alf foi pra São Paulo e eu fui também. Havia vários grupos e várias casas noturnas na época, então a gente fazia bastante coisa. Nessa época aí em São Paulo eu comecei a tocar também com o Sylvio Mazzuca, eu estava sempre indo e vindo, sempre entre o Rio e São Paulo.

Em 1963 eu estava passando a maior parte do meu tempo aqui no Rio, tocando no Bottle’s, e o Jorge Ben costumava aparecer lá para tocar. Lá no Bottle’s a gente não gostava disso, a gente não gostava de bico, mas os dois únicos que funcionavam, com quem a gente adorava tocar, eram a Rosinha de Valença e o Jorge Ben. O Jorge Ben sempre aparecia lá e tocava aquelas duas primeiras músicas dele [“Mas, Que Nada” e “Por Causa de Você, Menina”], até que o Manoel Gusmão levou ele lá na Philips, pra ver se ele gravava. Aí o Armando Pittigliani adorou, porque ele era um cara completamente desconhecido e em uma semana vendeu cem mil discos. Que naquela época não era nem compacto, era 78 rotações, esse foi o último 78 rpm, sabia? Depois vieram os Long-Playings e depois os compactos.

E quando nós fomos lá e gravamos com o Jorge Ben, o Armando Pittigliani chegou pra mim e disse: “o Jorge Ben é ótimo, mas o som dessa sua banda é bem interessante, hein?” e convidou a gente pra gravar um disco. Ele, inclusive, só conheceu o som do disco depois de gravado. Ele era um cara que acreditava muito na gente, por isso que ele produziu as melhores coisas, o Tamba Trio, Os Cariocas… E esse foi o meu começo. Depois disso eu fui pra ODEON, onde eu também gravei bastante coisa. Tem até um disco de 1969, Tropical, que é legal e acabou de ser relançado por uma gravadora inglesa. Mas esse não é samba-jazz, é latin jazz, por isso eu até mudei a formação e o nome, de Copa 5 pra Copa 7.

Então por que você diz que o Samba-Jazz!! é o seu terceiro disco?

Eu digo que o disco novo, Samba-Jazz!!, é o meu terceiro disco porque é o terceiro disco do Copa 5, que é o meu projeto pessoal. Os outros que eu lancei não fazem parte dessa minha trajetória. Quando eu estava na ODEON eu produzi, arranjei e orquestrei muitos discos, mas não botei meu nome em nenhum deles, para não misturar as coisas, não virar uma salada. Eu fiz arranjos até pro Chacrinha, mas ninguém sabe disso. Eu quis conservar o meu nome ligado ao samba-jazz, e acho que consegui. Senão fica como esses artistas que cada ano estão fazendo uma coisa diferente, você nunca sabe qual é a cara deles, o que eles gostam de fazer. É uma questão de estilo, é a minha maneira de fazer as coisas. Eu gosto de escolher os músicos com quem eu vou tocar, arranjar tudo legal. Eu tenho 60 anos, não preciso ficar me exibindo, mesmo porque eu sou meio preguiçoso. Mas eu gosto de interatividade, de tocar com pessoas diferentes, ver o que elas acrescentam às minhas músicas com seus solos. Não é como aquele menino, Yamandu Costa, que toca até demais. Ele é virtuose demais, não sobra espaço pra mais ninguém tocar com ele. [risos] Eu tenho segurança e posso dizer, nunca gravei um solo de bateria em um disco meu. E olha que eu toquei com os melhores bateristas, como o Dom Um Romão e o Edison Machado. E isso é uma questão estética, é um tipo de sonoridade que eu quero preservar em meus discos. Ao vivo é outra coisa, existe mais liberdade, mas nos discos eu quero manter um padrão. É tudo feito com espontaneidade, mas é uma espontaneidade organizada.

Havia mais efervescência na música nos anos 60?

Essa é uma boa maneira de dizer isso. A música era melhor naquela época. Mas acho que isso foi um reflexo de todo o momento criativo dos anos 60, tudo era mais rico, em todas as manifestações artísticas. Inclusive aqui no Brasil. Mas infelizmente nós tivemos o problema político que interrompeu e tornou tudo cada vez mais difícil. Na música acontecia também que nós tínhamos 20 anos, éramos todos muito românticos. Nós gostávamos tanto de tocar que não nos importávamos com a falta de profissionalismo. Os que tinham visão tomaram um avião e foram embora do Brasil. Porque aqui era assim, quem tocava tinha que tocar sem luz, sem som, sem palco. Mas nós tocávamos sem pensar muito, era como um hobby, era algo paralelo. E é assim até hoje. Eu tenho amigos aí em São Paulo que trabalham com publicidade, fazendo jingles, há 20 anos. Mas eles estão sempre tocando música instrumental por aí, ninguém agüenta ficar só fazendo jingles. Hoje eles tocam com um nome, amanhã com outro. Eu acho que esse nosso romantismo parou nos anos 60, agora a gente tem que buscar o melhor pra gente da melhor maneira.

Será que a música instrumental brasileira está tendo uma segunda chance?

Acho que a burrice da música nos últimos 10 anos entupiu as pessoas. As gravadoras não sabem mais o que fazer, ou melhor, não sabem mais fazer. É tudo tão repetitivo e tão ruim que o mercado ficou muito esquisito. E agora eles acordaram um pouco, você vai nas lojas e vê só relançamentos, de todos os estilos. É uma coisa que eles deveriam ter feito há muito tempo, mas ainda bem que estão fazendo. Então acho que essa coisa boa que nós temos agora é uma coisa de relançamentos, acho que continua sendo muito difícil para a música instrumental ter uma oportunidade em disco hoje em dia. E, para tocar ao vivo, talvez esteja melhorando pouco a pouco. Muita gente tem tocado, mas não da melhor maneira. As pessoas tocam hoje aqui, amanhã ali, em uns 4 lugares por semana, ganham R$100 por lugar, no fim do mês pagam o aluguel. Mas eu quero fazer samba-jazz e quero ter espaço.

O samba-jazz deveria ser reconhecido como um estilo do jazz, como o be-bop ou o cool jazz?

Acho que sim. Porque você veja, gente como o Stan Getz e o Bud Shank ficaram famosos assim e não compuseram nada como eu. Eles pegaram a bossa e ficaram ricos, sem compor. Não é uma música instrumental original. Mas aqui o rei sou eu. [risos]

Você passou um tempo no exterior. Por que decidiu voltar, se lá as oportunidades eram melhores?

Eu morei no México, na Suécia, em Monte Carlo, mas no fim eu sempre queria a minha cidade. Eu fui viajar com a minha família, foi ótimo, tive ótimas oportunidades. A melhor oportunidade da minha vida foi em um cassino em Monte Carlo. A Grace Kelly ainda estava viva, eu tomava uísque com o Frank Sinatra na mesa. E o dono do cassino me pagava muito bem. Mas uma hora a ficha caiu, aquilo era muito bonito, mas não era aquilo que eu queria, era tudo muito comercial. Talvez eu devesse ter tido paciência, ficado mais um pouco, enchido o bolso de grana antes de voltar, mas eu não agüentei. E, no fim, quando eu voltei, era o governo Médici e as coisas estavam ainda piores.

No texto da contra-capa do seu primeiro disco, de 1964, você escreveu que “nesta era de produções em massa”, era um “velho sonho feito realidade” gravar “uma música sem preconceitos e limitações comerciais”. E o que você acha da música hoje?

Pois é, eu tinha 23 anos e já era pessimista, e hoje em dia as coisas só pioraram. Acho que a indústria fonográfica do jeito que está é uma coisa antropofágica, que se destrói. Essa coisa da Egüinha Pocotó, não tinha isso nos anos 60. Tinha coisas ruins naquela época, mas elas não tiravam o espaço das coisas boas. Hoje em dia tem muita gente interessada em música boa, mas ninguém tem acesso. Quando as rádios FMs surgiram, elas só tocavam música instrumental, o tempo inteiro. Hoje em dia, você ouve uma hora por semana de música instrumental e é quase um favor. As coisas mudaram radicalmente, e eu não entendo porquê. Chegou um ponto em que eu desisti. E isso foi logo depois de lançar meu segundo disco, em 1965. Não acreditava mais naquilo. Eu vi amigos meus enlouquecerem, literalmente, e morrerem. Uma mistura de drogas e bebidas e frutrações, e eu não queria isso pra mim. Mas hoje as coisas estão melhorando, pelo menos para mim. Espero que melhore para os outros também.

Você está até sendo citado na novela das oito. Como aconteceu isso?

Eu conheço o Manoel Carlos há bastante tempo, trabalhei com ele na TV Record. Outro dia eu toquei na festa de lançamento da novela das 8, em que o meu amigo Laércio de Freitas está atuando. Ele foi o pianista do meu disco novo e agora é o pianista da banda do Tony Ramos na novela. Além de músico ele é ator. Então às vezes o Manoel Carlos coloca alguma piada comigo no texto. O pessoal da banda fala para o tony Ramos, que é um saxofonista, “toca direito senão a gente vai chamar o Meirelles pra ficar no seu lugar, hein?” e ele responde, “e você acha que alguém como o Meirelles vai querer tocar aqui?!”. [risos]