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A capa de Nara

Sobre a capa de Nara, primeiro disco de Nara Leão e um dos primeiros da gravadora Elenco, começo de 1964. Publicado há alguns anos no especial As 100 Maiores Capas de Disco de Todos os Tempos, da revista Bizz, para o qual também escrevi sobre Blue Train.

A foto de Nara em alto-contraste na capa do disco já revela muito. Com um olhar que transmite muito mais experiência do que se esperaria de uma moça de 22 anos, ela exibe ainda seu moderníssimo corte de cabelo chanel e de franja – coisa de mulher independente, que lê clássicos franceses e discute política com os rapazes. Escândalo. Seu nome vem ainda escrito de maneira ousada: com as quatro letras interligadas, juntas, e com duas setas saindos dos As, sobre um minimalista fundo branco, com quatro bolas vermelhas (contando a do logotipo da gravadora) espalhadas pela capa. Não era um disco qualquer.

Desde pelo menos fins dos anos 50 Nara já era figura essencial da Bossa Nova, oferecendo seu apartamento na Avenida Atlântica, em Copacabana, para as reuniões informais do movimento. Todos passaram por lá, levando seus violões, dedilhando o piano de seu pai ou simplesmente cantando algumas daquelas novas canções que estavam sendo compostas. Mas, quando chegou a hora de entrar em estúdio e gravar seu próprio disco, ela já estava cansada daquela frivolidade. Queria cantar sobre o povo, sobre as raízes do Brasil, sobre a pobreza e a terra. Para isso, escalou antigos sambistas então quase esquecidos, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti, e novos compositores que fugiam da simples bossa, como Carlos Lyra, Edu Lobo e Baden Powell. Com sua voz doce, cantou canções sobre o morro, sobre a censura, sobre a reforma agrária. Nada de barquinhos, banquinhos, beijinhos e peixinhos, nem sol, sal ou sul.

Ainda assim, Nara mantinha sonoridade com aquela bossa nova, fazendo uma versão mais sofisticada do samba. Convinha, então, na capa, mostrar a ousadia, a modernidade e a delicadeza daquela garota, com toda a sua personalidade. A contra-capa a chama de “musa” da Bossa Nova, mas também comenta que as músicas que escolheu cantar fogem de sua “personalidade de menina mansa” e “provocam um estranho e agradável contraste”. Contraste esse captado muito bem pelo retrato estilizado feito por Chico Pereira e pelo inventivo lay-out de César Villela, em uma de suas primeiras capas para o histórico selo Elenco.

João Gilberto disco-a-disco

Onze álbuns gravados em estúdio e metade disso ao vivo – cinco e meio. Menos de 17 discos de registro do som que tanto impacto causa na música há 50 anos: a voz e violão de João Gilberto. Mais de cinco décadas depois, o assombro e a influência que a arte de João Gilberto ainda inspira são os mesmos de quando lançou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1959. João Gilberto já sabia tudo: constantemente reinventando e evoluindo suas canções e interpretações, toda sua obra é lida como a evolução de uma sonoridade única, elaboradamente simples e infinitamente sofisticada. Logo abaixo (originalmente para o Uol em 2011, nos 80 anos de João), sua discografia comentada, do primeiro disco, lançado em 1959, até o mais recente, de 2004.


“Chega de Saudade” (1959)

Depois de participar do disco “Canção do Amor Demais” (de Elizeth Cardoso) e lançar dois 78 rotações em 1958, João Gilberto chegou à modernidade dos LPs ajudando a inventá-la. A voz íntima do ouvido, o som de violão absolutamente claro, a abordagem ao mesmo tempo casual e lapidada: eram muitos elementos novos que somavam àquele núcleo de criação exemplar. Além da remodernização de antigos sambas da década de 40 – um Dorival Caymmi, um Marino Pinto, dois Ary Barrosos -, contribui muito com o sabor de novidade a presença do produtor Tom Jobim, com três canções, seus pianos discretos e seus arranjos cheios de pequenos detalhes nas cordas e sopros, como contracantos de João.

Grande momento: “Morena boca de ouro”, releitura de um sucesso de 1941 de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas, aqui com o piano de Tom Jobim e a economia do arranjo impressionantes até hoje.


“O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960)

O segundo LP de João Gilberto já começava ousado na capa, em preto-e-branco solarizado, criada por Cesar Villela, que em breve faria as famosas capas da gravadora Elenco. Gravado pouco mais de seis meses depois do primeiro disco, e novamente com direção musical de Tom Jobim, o álbum trazia no repertório seis novas canções do produtor, mais um Caymmi e um antigo sucesso nunca gravado do tempo de conjuntos vocais: “O Pato”.

Grande momento: Abrindo com vocalises que reinventam as harmonias da versão original do conjunto vocal Anjos do Inferno, de 1945, “Doralice”, de Caymmi, ganha versão definitiva com João Gilberto, em nada além de um minuto e 29 segundos. De acompanhamento, além de seu violão e leve percussão, a modernidade do piano delicado e cristalino de Tom Jobim e breves comentários da flauta no contraponto.


“João Gilberto” (1961)

No mesmo fôlego, um ano depois foi gravado o terceiro LP, homônimo, de João Gilberto. Em algumas faixas, acompanhado do conjunto do pianista Walter Wanderley, todo o resto novamente com Tom. Além de três novas do produtor, o repertório continua lembrando antigos sambas dos anos 40, desta vez com dois Caymmis, um Geraldo Pereira e um Bide/Marçal.

Grande momento: “A primeira vez”, samba de Bide e Marçal cantado por Orlando Silva em 1939, surge em versão quase invertida: o volume do original é traduzido em arranjo quase solo de voz-e-violão, apenas com o piano ocasional de Tom.


“Getz/Gilberto” (1964)

E então, o mundo descobriu. Gravado em Nova York ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz (e com Tom ao piano), o álbum foi lançado pela gravadora de jazz Verve e se tornou famoso em todo o planeta, ganhando cinco prêmios Grammy. Cantada pela mulher de João, Astrud, “Girl from Ipanema” saiu em single (sem a voz de João) e vendeu mais de um milhão de cópias – a canção se tornou uma das mais regravadas da história.

Grande momento: O máximo de sublime de João em disco se revela em sua interpretação de “Pra machucar meu coração”, do então recém-falecido Ary Barroso, que João muito admirava e havia acabado de conhecer. Perfeição no piano de Tom, sax de Getz, baixo e bateria de Tião Neto e Milton Banana, e João, no seu mais suave e musical.


“Getz/Gilberto II” (1964)

O primeiro disco ao vivo (ou meio) de João, gravado no Carnegie Hall em outubro de 1964, lado B de um LP com Stan Getz do outro. Na versão em CD, cinco faixas bônus trazem João e Getz juntos, com Astrud.

Grande momento: Apesar de não manter a aura de magia do encontro em estúdio, “Você e eu” ao vivo é mais um interessante encontro do violão ritmado do João com o sax jazzístico de Getz e a voz vaporosa de Astrud.


“En Mexico” (1970)

Gravado durante temporada de João Gilberto no México, como já fica claro no título, o álbum só foi gravado seis anos depois do último, e desta vez com arranjos de Oscar Castro Neves. Entre as novidades do repertório, três boleros, dois Jobins, duas autorais sem letra e uma composição de seu amigo João Donato gravada dois anos antes por Sergio Mendes: “The Frog”.

Grande momento: João canta tão próximo do microfone que sua respiração funde-se com sua voz com inigualável efeito de intimidade com o ouvinte em “Astronauta” (também conhecida como “Samba da pergunta”), só com seu violão, piano pontuando e etéreas cordas ao fundo.


“João Gilberto” (1973)

O auge do minimalismo zen de João, gravado novamente em Nova York. Desta vez acompanhado apenas do percussionista Sonny Carr e, em uma faixa, da voz de sua então nova esposa, Miúcha. Além de um Jobim, três faixas sem letra e mais alguns sambas antigos, a grande novidade são canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Grande momento: É irresistível acompanhar as harmonias vocais que João cria em contracanto com Miúcha em “Isaura”, sua versão do samba de 1945 de Francisco Alves. João, virtuose dos detalhes.


“Best of Two Worlds” (1976)

Com repertório baseado no chamado “álbum branco”, de três anos antes, traz novo encontro com Stan Getz, mais de dez anos depois do “Getz/Gilberto” original. Duas faixas são cantadas solo por Miúcha e uma novidade do repertório é “Retrato em Branco e Preto”, parceria do irmão da noiva, Chico Buarque, com Tom Jobim.

Grande momento: Cantada com serenidade e emoção por João, “Ligia” é uma novidade de Tom Jobim até hoje: João canta a primeira versão da letra, diferente da que depois ficou mais conhecida, com retoques de Chico Buarque. Getz aparece com dois solos dobrados, sobrepostos com melodias diferentes.

(Bônus momento: “É preciso perdoar“.)


“Amoroso” (1977)

Trazendo composições em inglês, italiano e espanhol e arranjos de orquestra do alemão Claus Ogerman – que havia cuidado da orquestra nos discos solo de Tom Jobim -, “Amoroso” foi desde seu lançamento recebido como momento de gala para João e é até hoje um de seus álbuns mais conceituados entre jazzistas.

Grande momento: Não é nem preciso entender a letra em italiano de “Estate” para ficar tocado com sua sensibilidade. Lendo-se, então, o “verão que criou nosso amor” e agora é um “legado de dor”, emocionante.


“João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” (1980)

Segundo disco ao vivo de João, de um especial de TV da Rede Globo com plateia, orquestra e participações de sua filha Bebel Gilberto (então com 14 anos) e Rita Lee. Johnny Alf e Lamartine Babo são surpresas do repertório.

Grande momento: Antiga marchinha de 1939 de Lamartine Babo, cantada por Mário Reis em dueto com Mariah, “Jou Jou Balangandãs” vira pura bossa com a voz da tropicalista Rita Lee, interpretações em pura doçura.


“Brasil” (1981)

Gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia: o violão de João, comentários dramáticos nas cordas e percussões e as quatro vozes se fundindo – Bethânia canta suave como nunca antes ou depois. Quase um disco conceitual sobre a Bahia, com versões de Caymmi, Ary Barroso e, novidade, Os Tincoãs.

Grande momento: Versão do standard americano “All of me” pelo letrista Haroldo Barbosa, “Disse alguém” é uma pérola, com João fazendo uma adaptação jazzística da sua batida ao violão, pequenas alterações na melodia e toda uma nova cor nas imagens em português.


“Ao Vivo em Montreux” (1986)

Terceiro disco ao vivo e um dos melhores momentos de João no palco, foi gravado – todo de voz e violão – no famoso festival de jazz suíço em 1985 e lançado em LP duplo, depois CD simples com duas músicas a menos.

Grande momento: O antigo sucesso de 1948 de Haroldo Barbosa na voz d’Os Cariocas, “Adeus América”, ganha todo um novo contexto na voz mântrica de João Gilberto, que tanto tempo morou nos Estados Unidos e havia retornado ao Brasil há pouco.


“João” (1991)

Com arranjos de cordas do americano Clare Fischer sobre a base de violão e voz de João, o disco não atinge os mesmos níveis de Amoroso, mas tem ótimo repertório, com Noel Rosa, Cole Porter, bolero, chanson.

Grande momento: João parece ter total controle sobre como fazer o tempo parar, andar para frente ou para trás em seus ritmos de violão e andamentos vocais. Em “Eu sambo mesmo”, de Janet de Almeida, cantada pelos Anjos do Inferno em 1946, o sublime é atingido já nos primeiros segundos.


“Eu Sei Que Vou Te Amar” (1994)

O quarto disco ao vivo de João e o mais sem graça, com mixagem imperfeita, edição brusca e repertório sem surpresas. “Você não sabe amar” é boa novidade.

Grande momento: “Lá vem a baiana”, de Caymmi, sempre perfeito na voz de João.


“Live at Umbria Jazz Fest” (1996/2002)

Quinto disco ao vivo de João, gravado na Itália em 1996 e lançado em CD em 2002. Mais atualizações de canções de todas as fases da carreira de João.

Grande momento: “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, tão conhecida e sempre tão nova com João.


“Voz e Violão” (1999)

Produzido por Caetano Veloso, foi o último de estúdio gravado por João e o único inteiramente só de voz e violão. O repertório recupera sambas antigos de Bororó, Herivelto Martins, uma raridade de Tom Jobim, dois Caetanos e novas lapidações de “Chega de saudade” e “Desafinado”, cada vez mais sintéticas.

Grande momento: Dessa vez João Gilberto não foi tão longe, apenas 1980, para encontrar uma maravilha. “Você vai ver” foi lançada no álbum Terra Brasilis, de Tom Jobim, como uma elegante canção de fim de amor, aqui transformada em pura candura.


“In Tokyo” (2004)

País que cultua João Gilberto talvez até mais que o Brasil e recebe visitas frequentes para turnês, o Japão rendeu o mais recente disco ao vivo de João, sexto de sua carreira. Gravado em 2004, João tinha então 73 anos e faz ótima performance, tranquila e depurada.

Grande momento: Aracy de Almeida cantava “Louco” de Wilson Batista em 1946, e desde os anos 50 João a traz em seu repertório, apesar de nunca tê-la gravada em estúdio. Canta ao vivo a história do louco que chora e anda pelas ruas, transformando-se até num vagabundo.

A nova capa do disco Edu & Bethânia

Que viagem: a nova reedição em CD do disco de Edu Lobo & Maria Bethânia de 1967, teve a capa (de Cesar Villela) alterada, acima, agora sem a foto original. Pedro Moraes (filho de Vinicius), autor da foto, decidiu não liberar o uso de sua imagem na nova edição. (Leia-se quis ganhar mais do que a Universal estava disposta a pagar – leia-se provavelmente nada.) O CD com a nova capa está saindo dentro do box Maria (sai junto com outro chamado Bethânia), e no ano passado o mesmo aconteceu no box lançado pela mesma gravadora de Gal Costa, só que ali foi no disco Gal & Caymmi.

ooooooh! norma

luz de buate
música de buate
ritmos de buate
voz de veludo
voz de mulher
voz de norma benguell
…para você

oh! norma…
— é uma voz sentada ao colo
cantando no seu ouvido —

* Na produção normal de uma Fábrica Gravadora, ocasiões se apresentam que nos levam a provar que não existem fronteiras quando se trata de talento. O disco pode e deve transmitir ao público qualquer tipo de personalidade. E procura fazer isso somente com o sentido da audição, sem a ajuda de nossa visão e o que “ela” nos pode oferecer de côr e beleza. Êste LP foi providenciado com esta finalidade: procurar captar, unicamente, em som, o talento indiscutível de NORMA BENGUELL. Confiamos na inteligência e imaginação do ouvinte dêste disco, certos de que uma surpresa bastante agradável os espera.

Vamos fazer tudo em alto contraste!

Ano passado fiz alguns ensaios, resenhas e entrevistas para o UOL, na onda do momento bossa nova que dominou os veículos de comunicação. Aproveitei pra ligar para o velho amigo Cesar Villela – talvez o maior capista de discos brasileiro, criador do projeto visual da Elenco e inúmeras outras obras-primas – e passar a limpo algumas histórias que tinha ouvido extra-oficialmente.

Ficou assim:

César Villela é um dos mais influentes artistas gráficos brasileiros. Começou a invadir o inconsciente coletivo de todos os brasileiros interessados em música no fim dos anos 50, quando fazia dezenas de capas por mês para a gravadora Odeon e achava tempo e inspiração suficiente para criar imagens lindas e elegantes, como a do disco Ooooooh! Norma de Norma Benguell, e vários de Silvinha Telles.

Em 1963 acompanhou o produtor Aloysio Oliveira quando esse saiu da Odeon e criou sua própria gravadora, a revolucionária Elenco, que lançou os discos de estréia de gente como Nara Leão, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Edu Lobo, Astrud Gilberto e álbuns de Baden Powell, Roberto Menescal e Maysa. Na Elenco, César abusou do minimalismo e ajudou a criar a imagem da própria bossa nova: elegante, discreta, moderna, ousada.

O capista, que hoje mora no Rio e trabalha com artes plásticas, contou mais de sua história, suas criações e suas inspirações.

Como foi a criação da Elenco?

O Aloysio de Oliveira saiu da Odeon e começou fazer shows no Au bom Gourmet, onde eu fazia os cenários. O primeiro foi O Encontro, com João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Os Cariocas. E ele e o Flávio Ramos –o dono do Au Bom Gourmet– resolveram fazer uma gravadora para lançar aquele elenco. A maioria dos músicos da bossa nova não tinha gravadora, a Odeon só queria o João Gilberto. E todos queriam botar o nome na praça, então todo mundo adorou. Depois o Flavio Ramos acabou saindo da parceria e o Aloysio criou a Elenco sozinho. Mas a Elenco era sofisticada demais pra época, só vendia na Zona Sul do Rio de Janeiro –acho que depois de um tempo ganhou mais cartaz em São Paulo que no Rio. Eu e o Chico Pereira, meu parceiro, que fazia as fotos, não ganhávamos nada para fazer as capas, era tudo na base da amizade. Fazíamos por acreditar naquilo.

De onde veio a idéia para a simplicidade estética da Elenco e de tantas de suas capas?

Comecei a simplificar na Odeon, uma das principais capas dessa época é a do Noel Rosa –com uma rosa no lugar do “o”. Eu via as vitrines confusas, todos fazíamos capas muito confusas. E não havia TV para fazer propaganda –as capas tinham de vender o disco! Aí lembrei que o Marshall McLuhan chamava isso de ruído visual e comecei a simplificar ao máximo. Os discos da Elenco brigavam nas lojas com os discos das multinacionais, eles tinham de sobressair. A simplificação das capas foi uma maneira de chamar a atenção para eles.

E o tão comentado alto contraste, como surgiu?

O alto contraste surgiu na Odeon. Eu conversava com o Chico Pereira e dizia pra ele que precisávamos simplificar as capas. Nessa época, ele era professor na ABAF e eu às vezes ia lá com ele. Quem estudava lá não eram fotógrafos profissionais, eram médicos, advogados. E certa vez vi uma exposição com diferentes experimentações na revelação e gostei de uma, que estava em alto contraste. Perguntei pro Chico se ele conseguia fazer aquilo e ele me disse que sim. A primeira capa com essa idéia foi a do disco O Amor, o Sorriso e a Flor, do João Gilberto, com efeito solarizado. Resolvi experimentar e todo mundo topou, ninguém falou nada. Aí, quando o Aloysio me chamou pra fazer as capas da Elenco eu disse, “vamos fazer tudo em alto contraste!”

Outro elemento famoso das capas da Elenco são os detalhes em vermelho.

Quando eu fazia capas desenhadas, eu colocava recortes vermelhos por cima. E as capas com fotos têm sempre quatro bolinhas, contando a do logotipo. Na época eu andava lendo umas coisas espirituais e li na Cabala dos judeus que o número quatro era ligado à harmonia. Achei que harmonia tinha a ver com música, daí resolvi usar aquela idéia nas bolinhas.

Depois de um tempo vocês desistiram do alto contraste e logo depois pararam de fazer capas. Como foi a transição?

Fazer as capas em alto contraste dava muito trabalho naquela época. Não era como hoje, que com um computador, em um segundo, você faz. Então, em certo ponto, o Chico não quis mais fazer. Além de dar trabalho, aquilo custava dinheiro, eram necessárias várias revelações. Aí experimentamos um pouco com outros estilos: fizemos duas capas com (a técnica) jato de areia, da Rosinha de Valença e do Roberto Menescal. Depois disso, paramos e fui morar nos Estados Unidos, em uma empresa de animação. Um tempo depois fiz mais algumas capas para o Aloysio, como a do disco Contrastes, da Odete Lara, e do álbum do Edu Lobo com a Maria Bethânia.

E o Aloysio continou mais um pouco com a Elenco e depois a gravadora acabou, virou um selo da Philips.

Fui para os Estados Unidos em outubro de 1964 e lá só tocava “Garota de Ipanema” (risos). Mas aqui o mercado estava difícil, os militares estavam no poder, o Aloysio não estava ganhando dinheiro. Ele ainda segurou um tempo, mas depois vendeu a Elenco pra Philips. No fim, não ganhou nada, só gastou. Ele não tinha dinheiro, morava num apartamento de um quarto. A Elenco não vendia muito, mas na época os números eram diferentes: Anísio Silva era um grande vendedor de discos e vendia 10, 15 mil cópias.

O disco Vinicius & Odette Lara foi o primeiro lançado pela Elenco, mas não foi o primeiro que você fez, certo?

É, eu fazia as capas antes mesmo dos discos serem gravados. As capas eram feitas dois, três meses antes. A contracapa, com o repertório, era feita depois, porque era mais simples. O Aloysio (já na Odeon, depois também na Elenco) me passava uma lista com vários artistas. Alguns álbuns não tinham nem nome, alguns artistas não sabiam nem que iam gravar! Era preciso fazer com essa antecedência porque estávamos fazendo as capas em off-set, que era um tipo novo de impressão. Antes nós só tínhamos litografia e rotogravura, então nem todas as gráficas sabiam mexer com os fotolitos –e as que mexiam eram muito disputadas pelas agências de publicidade.

Como era o seu processso criativo das capas? Você tinha a idéia antes, passava pro Chico Pereira e depois montava tudo?

Eu dirigia as fotos, às vezes desenhava como imaginava que elas deveriam ser. No disco do Vinicius com a Odette, por exemplo, eles não puderam se encontrar pra foto. Então fizemos com os dois separadamente e depois eu montei: peguei a Odete com o pé no banquinho e pus o “&” ali. Para um disco da Sylvia Teles, o Aloysio tinha dado o título: Bossa! Balanço! Balada!, me entregou datilografado. Aí tive a idéia de desenvolver as exclamações em parte gráfica. Pra fazer uma do Roberto Menescal, lembrei que ele era um grande pescador. E o Chico também era, às vezes eles iam mergulhar juntos. Aí sugeri fotografar com aquela roupa. Chico me trouxe a foto e bolei a idéia de cada rapaz da banda estar representado por um peixinho. E muita coisa eu desenvolvi por pura intuição, como as setas na capa do primeiro disco da Nara Leão.

O design de Cesar Villela

Em setembro de 2004 fui convidado pelo amigo Farinha para fazer a curadoria da exposição O Design de Cesar Villela, no Sesc Vila Mariana, dentro da programação do Resfest daquele ano.

Conseqüência de um site que fiz na raça na minha juventude pra botar na roda uma discografia que havia levantado da gravadora Elenco – tão famosa por lançar os discos de estréia de Tom Jobim, Nara Leão e afins quanto pelo estiloso projeto visual criado por Cesar para o selo.

Com a generosa ajuda de amigos como Dui, Souza, seu Luiz, Daniel e Clá (lista completa, com todo o agradecimento do meu coração, aqui), reuni 96 capas (das mais de mil) feitas por Cesar entre os anos 50 e 70, para várias gravadoras: 24 da Elenco, 45 da Odeon, cinco da Imperial, três da Evento, duas da Quartin e duas da Drink, entre outras.

Abaixo, fotos da exposição, com a sensacional cenografia do Pier Balestrieri – note o tapete e postes vermelhos e os acrílicos com os discos.