Tag Archives: Gilberto Gil

40 Anos de Quem é Quem …é João Donato

Donato-Quem40-Q

Dentro da série de comemorações de 80 anos de João Donato em 2014, nos próximos dias 27 e 28 de fevereiro, no Teatro do Sesc Pinheiros, show especial traz o álbum clássico de 1973 de João Donato “Quem é Quem” apresentado pela primeira vez ao vivo. Com banda nova com músicos de São Paulo incluindo integrantes da big band Bixiga 70 e com convidados como as cantoras Tulipa Ruiz e Mariana Aydar e o produtor original do disco, Marcos Valle, o espetáculo relembra o som e as canções do cultuado disco de Donato nos 40 anos do lançamento do LP que trazia hits como “A rã”, “Cala boca menino” e “Amazonas”.

Quem-logo-B-transp

40 ANOS

João Donato está à vontade. Prestes a completar 80 anos – em agosto de 2014 -, continua produtivo, inspirado e moderno como sempre. Amigo íntimo da Música, Donato passou por todos os estilos ao longo da carreira, sempre livre, sempre à vontade. “Quem é Quem” foi seu primeiro disco com letra e cantado, produzido em 1973 por Marcos Valle no Brasil após longa temporada de Donato nos EUA. Gravado com participações de músicos como Hélio Delmiro, Bebeto Castilho, Lula Nascimento, Naná Vasconcelos e a cantora Nana Caymmi, o álbum trazia arranjos de cordas e sopros de Gaya, Laércio de Freitas, Ian Guest, Dori Caymmi e do próprio Donato, disco-símbolo da sonoridade perfeita dos discos brasileiros dos anos 70.

Carregado de brincadeiras em estéreo, groove no alvo e arranjos geniais, o disco tinha como essência muito piano elétrico com Donato no rhodes, canções instantaneamente clássicas e presença de espírito suficiente para por exemplo colocar no fim de uma música um solo de declamação de carta, falando d’“aquela poeira, rapaz, no caminho da cachoeira”. Com sua naturalidade tranquila e musicalidade máxima, Donato desde sempre fundia a espontaneidade do jazz com um agradável senso pop e musicalidade intensamente brasileira, e em “Quem é Quem” chegou a auge de criatividade em disco, mestre absoluto do zen-groovismo, das harmonias bem encontradas, da eterna busca das notas bonitas, do silêncio bem colocado.

Da mesma geração de João Gilberto e Tom Jobim, João Donato levou seu piano e canções ao jazz americano com músicos como Chet Baker, à música latina de figuras como Mongo Santamaria e Cal Tjader e muito da música brasileira dos últimos 40 ou 50 anos. “Quem é Quem” aparece na sua discografia logo após pérolas psicodélicas como seus discos americanos “A Bad Donato” e “Donato/Deodato” e logo antes dele iniciar relação com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa que renderia canções em parceria e aparições essenciais em discos como “Cantar” de Gal em 74 e “Qualquer Coisa” de Caetano em 1975.

Na época pouco apoiado por sua gravadora, coube a Donato cuidar do lançamento de seu disco “Quem é Quem”, ao subir no Morro da Glória e lá de cima lançar um por um uma caixa inteira de LPs para quem passava por ali. Apresentado ao vivo hoje pela primeira vez, quarenta anos depois do lançamento, o show que acontece no Sesc Pinheiros é especial, com encontro de João Donato com novos músicos de São Paulo, incluindo membros da banda paulistana Bixiga 70, e participação estrelares de Marcos Valle, grande inventivador e produtor do disco em 73, Mariana Aydar, amiga que em seu primeiro disco em 2006 já gravou com Donato, e Tulipa Ruiz, admiração mútua e encontro inédito e afetivo.

Espetáculo carinhosa e artesanalmente criado relembrando e atualizando o som do álbum que trazia clássicos como “A rã”, “Cala boca menino” e “Amazonas”. Com a simplicidade elegante de sua música e a sutileza e beleza que coloca a cada nota e a cada silêncio entre elas, João Donato é músico sem era, de todas as gerações. Seu tempo são todos: música bonita não tem época.

27 e 28 de FEVEREIRO, 21h
SESC PINHEIROS | RUA PAES LEME 195

FICHA TÉCNICA
MÚSICOS
Tulipa Ruiz, voz
Mariana Aydar, voz
Marcos Valle, voz, piano elétrico Fender Rhodes e minimoog
João Donato, voz, piano e piano elétrico Fender Rhodes
Marcelo Dworecki, baixo elétrico
Guilherme Kastrup, percussão
Décio 7, bateria
Mauricio Fleury, guitarra
Anderson Quevedo, sax tenor, sax barítono e flauta
Richard Fermino, trombone, clarone e flauta
Cuca Ferreira, sax barítono, flauta e flautim
REPERTÓRIO
Chorou, chorou (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Terremoto (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Amazonas (João Donato)
Fim de sonho (João Donato / João Carlos Pádua)
A rã (João Donato / Caetano Veloso)
Ahiê (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Cala boca menino (Dorival Caymmi)
Nãna das águas (João Donato / Geraldo Carneiro)
Me deixa (João Donato / Geraldo Carneiro)
Até quem sabe (João Donato / Lysias Enio)
Mentiras (João Donato / Lysias Enio)
Cadê Jodel (João Donato / Marcos Valle)
Não tem nada não (João Donato / Eumir Deodato / Marcos Valle)
Flor de maracujá (João Donato / Lysias Enio)
REALIZAÇÃO
Direção Ronaldo Evangelista
Produção Executiva Agogô Cultural
Técnico de som Fernando Narcizo
Técnico de PA Rubinho Marques
Desenho de Luz Marcos Franja
Roadie Júnior Zorato
Apoio Estúdio Traquitana
Foto Manoela Cardoso

João Gilberto disco-a-disco

Onze álbuns gravados em estúdio e metade disso ao vivo – cinco e meio. Menos de 17 discos de registro do som que tanto impacto causa na música há 50 anos: a voz e violão de João Gilberto. Mais de cinco décadas depois, o assombro e a influência que a arte de João Gilberto ainda inspira são os mesmos de quando lançou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1959. João Gilberto já sabia tudo: constantemente reinventando e evoluindo suas canções e interpretações, toda sua obra é lida como a evolução de uma sonoridade única, elaboradamente simples e infinitamente sofisticada. Logo abaixo (originalmente para o Uol em 2011, nos 80 anos de João), sua discografia comentada, do primeiro disco, lançado em 1959, até o mais recente, de 2004.


“Chega de Saudade” (1959)

Depois de participar do disco “Canção do Amor Demais” (de Elizeth Cardoso) e lançar dois 78 rotações em 1958, João Gilberto chegou à modernidade dos LPs ajudando a inventá-la. A voz íntima do ouvido, o som de violão absolutamente claro, a abordagem ao mesmo tempo casual e lapidada: eram muitos elementos novos que somavam àquele núcleo de criação exemplar. Além da remodernização de antigos sambas da década de 40 – um Dorival Caymmi, um Marino Pinto, dois Ary Barrosos -, contribui muito com o sabor de novidade a presença do produtor Tom Jobim, com três canções, seus pianos discretos e seus arranjos cheios de pequenos detalhes nas cordas e sopros, como contracantos de João.

Grande momento: “Morena boca de ouro”, releitura de um sucesso de 1941 de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas, aqui com o piano de Tom Jobim e a economia do arranjo impressionantes até hoje.


“O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960)

O segundo LP de João Gilberto já começava ousado na capa, em preto-e-branco solarizado, criada por Cesar Villela, que em breve faria as famosas capas da gravadora Elenco. Gravado pouco mais de seis meses depois do primeiro disco, e novamente com direção musical de Tom Jobim, o álbum trazia no repertório seis novas canções do produtor, mais um Caymmi e um antigo sucesso nunca gravado do tempo de conjuntos vocais: “O Pato”.

Grande momento: Abrindo com vocalises que reinventam as harmonias da versão original do conjunto vocal Anjos do Inferno, de 1945, “Doralice”, de Caymmi, ganha versão definitiva com João Gilberto, em nada além de um minuto e 29 segundos. De acompanhamento, além de seu violão e leve percussão, a modernidade do piano delicado e cristalino de Tom Jobim e breves comentários da flauta no contraponto.


“João Gilberto” (1961)

No mesmo fôlego, um ano depois foi gravado o terceiro LP, homônimo, de João Gilberto. Em algumas faixas, acompanhado do conjunto do pianista Walter Wanderley, todo o resto novamente com Tom. Além de três novas do produtor, o repertório continua lembrando antigos sambas dos anos 40, desta vez com dois Caymmis, um Geraldo Pereira e um Bide/Marçal.

Grande momento: “A primeira vez”, samba de Bide e Marçal cantado por Orlando Silva em 1939, surge em versão quase invertida: o volume do original é traduzido em arranjo quase solo de voz-e-violão, apenas com o piano ocasional de Tom.


“Getz/Gilberto” (1964)

E então, o mundo descobriu. Gravado em Nova York ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz (e com Tom ao piano), o álbum foi lançado pela gravadora de jazz Verve e se tornou famoso em todo o planeta, ganhando cinco prêmios Grammy. Cantada pela mulher de João, Astrud, “Girl from Ipanema” saiu em single (sem a voz de João) e vendeu mais de um milhão de cópias – a canção se tornou uma das mais regravadas da história.

Grande momento: O máximo de sublime de João em disco se revela em sua interpretação de “Pra machucar meu coração”, do então recém-falecido Ary Barroso, que João muito admirava e havia acabado de conhecer. Perfeição no piano de Tom, sax de Getz, baixo e bateria de Tião Neto e Milton Banana, e João, no seu mais suave e musical.


“Getz/Gilberto II” (1964)

O primeiro disco ao vivo (ou meio) de João, gravado no Carnegie Hall em outubro de 1964, lado B de um LP com Stan Getz do outro. Na versão em CD, cinco faixas bônus trazem João e Getz juntos, com Astrud.

Grande momento: Apesar de não manter a aura de magia do encontro em estúdio, “Você e eu” ao vivo é mais um interessante encontro do violão ritmado do João com o sax jazzístico de Getz e a voz vaporosa de Astrud.


“En Mexico” (1970)

Gravado durante temporada de João Gilberto no México, como já fica claro no título, o álbum só foi gravado seis anos depois do último, e desta vez com arranjos de Oscar Castro Neves. Entre as novidades do repertório, três boleros, dois Jobins, duas autorais sem letra e uma composição de seu amigo João Donato gravada dois anos antes por Sergio Mendes: “The Frog”.

Grande momento: João canta tão próximo do microfone que sua respiração funde-se com sua voz com inigualável efeito de intimidade com o ouvinte em “Astronauta” (também conhecida como “Samba da pergunta”), só com seu violão, piano pontuando e etéreas cordas ao fundo.


“João Gilberto” (1973)

O auge do minimalismo zen de João, gravado novamente em Nova York. Desta vez acompanhado apenas do percussionista Sonny Carr e, em uma faixa, da voz de sua então nova esposa, Miúcha. Além de um Jobim, três faixas sem letra e mais alguns sambas antigos, a grande novidade são canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Grande momento: É irresistível acompanhar as harmonias vocais que João cria em contracanto com Miúcha em “Isaura”, sua versão do samba de 1945 de Francisco Alves. João, virtuose dos detalhes.


“Best of Two Worlds” (1976)

Com repertório baseado no chamado “álbum branco”, de três anos antes, traz novo encontro com Stan Getz, mais de dez anos depois do “Getz/Gilberto” original. Duas faixas são cantadas solo por Miúcha e uma novidade do repertório é “Retrato em Branco e Preto”, parceria do irmão da noiva, Chico Buarque, com Tom Jobim.

Grande momento: Cantada com serenidade e emoção por João, “Ligia” é uma novidade de Tom Jobim até hoje: João canta a primeira versão da letra, diferente da que depois ficou mais conhecida, com retoques de Chico Buarque. Getz aparece com dois solos dobrados, sobrepostos com melodias diferentes.

(Bônus momento: “É preciso perdoar“.)


“Amoroso” (1977)

Trazendo composições em inglês, italiano e espanhol e arranjos de orquestra do alemão Claus Ogerman – que havia cuidado da orquestra nos discos solo de Tom Jobim -, “Amoroso” foi desde seu lançamento recebido como momento de gala para João e é até hoje um de seus álbuns mais conceituados entre jazzistas.

Grande momento: Não é nem preciso entender a letra em italiano de “Estate” para ficar tocado com sua sensibilidade. Lendo-se, então, o “verão que criou nosso amor” e agora é um “legado de dor”, emocionante.


“João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” (1980)

Segundo disco ao vivo de João, de um especial de TV da Rede Globo com plateia, orquestra e participações de sua filha Bebel Gilberto (então com 14 anos) e Rita Lee. Johnny Alf e Lamartine Babo são surpresas do repertório.

Grande momento: Antiga marchinha de 1939 de Lamartine Babo, cantada por Mário Reis em dueto com Mariah, “Jou Jou Balangandãs” vira pura bossa com a voz da tropicalista Rita Lee, interpretações em pura doçura.


“Brasil” (1981)

Gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia: o violão de João, comentários dramáticos nas cordas e percussões e as quatro vozes se fundindo – Bethânia canta suave como nunca antes ou depois. Quase um disco conceitual sobre a Bahia, com versões de Caymmi, Ary Barroso e, novidade, Os Tincoãs.

Grande momento: Versão do standard americano “All of me” pelo letrista Haroldo Barbosa, “Disse alguém” é uma pérola, com João fazendo uma adaptação jazzística da sua batida ao violão, pequenas alterações na melodia e toda uma nova cor nas imagens em português.


“Ao Vivo em Montreux” (1986)

Terceiro disco ao vivo e um dos melhores momentos de João no palco, foi gravado – todo de voz e violão – no famoso festival de jazz suíço em 1985 e lançado em LP duplo, depois CD simples com duas músicas a menos.

Grande momento: O antigo sucesso de 1948 de Haroldo Barbosa na voz d’Os Cariocas, “Adeus América”, ganha todo um novo contexto na voz mântrica de João Gilberto, que tanto tempo morou nos Estados Unidos e havia retornado ao Brasil há pouco.


“João” (1991)

Com arranjos de cordas do americano Clare Fischer sobre a base de violão e voz de João, o disco não atinge os mesmos níveis de Amoroso, mas tem ótimo repertório, com Noel Rosa, Cole Porter, bolero, chanson.

Grande momento: João parece ter total controle sobre como fazer o tempo parar, andar para frente ou para trás em seus ritmos de violão e andamentos vocais. Em “Eu sambo mesmo”, de Janet de Almeida, cantada pelos Anjos do Inferno em 1946, o sublime é atingido já nos primeiros segundos.


“Eu Sei Que Vou Te Amar” (1994)

O quarto disco ao vivo de João e o mais sem graça, com mixagem imperfeita, edição brusca e repertório sem surpresas. “Você não sabe amar” é boa novidade.

Grande momento: “Lá vem a baiana”, de Caymmi, sempre perfeito na voz de João.


“Live at Umbria Jazz Fest” (1996/2002)

Quinto disco ao vivo de João, gravado na Itália em 1996 e lançado em CD em 2002. Mais atualizações de canções de todas as fases da carreira de João.

Grande momento: “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, tão conhecida e sempre tão nova com João.


“Voz e Violão” (1999)

Produzido por Caetano Veloso, foi o último de estúdio gravado por João e o único inteiramente só de voz e violão. O repertório recupera sambas antigos de Bororó, Herivelto Martins, uma raridade de Tom Jobim, dois Caetanos e novas lapidações de “Chega de saudade” e “Desafinado”, cada vez mais sintéticas.

Grande momento: Dessa vez João Gilberto não foi tão longe, apenas 1980, para encontrar uma maravilha. “Você vai ver” foi lançada no álbum Terra Brasilis, de Tom Jobim, como uma elegante canção de fim de amor, aqui transformada em pura candura.


“In Tokyo” (2004)

País que cultua João Gilberto talvez até mais que o Brasil e recebe visitas frequentes para turnês, o Japão rendeu o mais recente disco ao vivo de João, sexto de sua carreira. Gravado em 2004, João tinha então 73 anos e faz ótima performance, tranquila e depurada.

Grande momento: Aracy de Almeida cantava “Louco” de Wilson Batista em 1946, e desde os anos 50 João a traz em seu repertório, apesar de nunca tê-la gravada em estúdio. Canta ao vivo a história do louco que chora e anda pelas ruas, transformando-se até num vagabundo.

Lucas Santtana & O Deus que devasta mas também cura

Fim de janeiro, começo de fevereiro, conversei com meu novo vizinho Lucas Santtana sobre seu especial disco novo, O Deus Que Devasta Mas Também Cura, para matéria na revista Rolling Stone, edição de março, nas bancas.

Hoje, às 21h, acontece show de lançamento do álbum, com participação de Letieres Leite, no Sesc Vila Mariana. O disco, pode pegar aqui. Logo abaixo, o vídeo da faixa-título, direção de Daniel Lisboa, Diego Lisboa e Matheus Vianna.

Na sequência, todo o papo com Lucas, altas ideias, grandes pensamentos, vários insights e algumas histórias de processo, inspiração, composição e situação do disco novo, o novo da Céu, o álbum do Gui Amabis, amigos músicos, São Paulo, a gringa, amor, amizade, sinceridade & videogame.

O disco novo é um disco “de canções”? Tem algum conceito maior por trás ou alguma ideia que amarra tudo?

Meus discos são sempre discos de canções, só que acabo me divertindo mesmo é em encontrar as camadas de som para vesti-las. Todos os meus discos são assim, e por coincidência todos acabaram tendo alguma coisa que os amarraram. Gosto disso porque ainda gosto da idéia do álbum, como um livro contando uma história em varios capítulos. Os capitulos nao deixam de ser independentes, mas sao parte de um todo. O pessoal até já fica perguntando: qual será o tema no próximo disco? etc. Eu só não quero que isso se torne uma obrigação.

O que amarrou esse disco foi que 80% das canções foram feitas num periodo de dois meses, um tempo depois da minha separação. Fiz umas 15 a 20 músicas nesses dois meses e separei oito delas para o disco. Tive uma necessidade enorme de descrever o que se passava na minha frente, o disco quase não tem situações ficcionais. E as que tem foram inspiradas em fatos reais.

Outra coisa que amarra são as camadas sinfônicas, ora tocadas, ora sampleadas. Foi um reencontro com a minha adolescência, quando ouvia e tocava música clássica. Havia parado de ouvir esse repertório musical, mas de um ano para cá tava ouvindo bastante e acabou contaminando totalmente o disco.

Só aí me toquei como essa informação auditiva na minha adolescência contaminou o modo que produzo música. O que é o repertório de orquestra senão um monte de camadas e mais camadas que se alternam o tempo todo? É um dub de camadas se alternando, só não tem ecos e reverbs, hahahaha.

A faixa título, “O Deus que devasta mas também cura”, saiu em 2011 em uma versão no disco do Gui Amabis, Memórias Luso/Africanas. Foi parte do processo do álbum novo?

Então, o start do disco se deu quando o Gui me deu a base dessa música para fazer a melodia e a letra. Acho a versão dele linda, e minha voz na gravação dele ainda traz muita tristeza. Quando gravei a minha versão já estava numa fase mais de contemplativa, e chamei o Letieres Leite e alguns membros da Orkestra Rumpilezz para não ficar para trás, hahahahaha.

Você gravou onde? Quem produziu? Quais as participações mais legais?

Gravei em vários estúdios em São Paulo, Rio e Bahia. Em São Paulo basicamente no Minduca do Bruno Buarque e na Toca do Calvo do Gui Amabis. Mixei com o Buguinha Dub no Studio Mundo Novo e Masterizei com o Lenza na Yb.

Tem muitas participações, quase todo mundo que tocou eu considero participações especiais. Céu, Curumin, Gui, Rica Amabis, Gilberto Monte, que fez várias coisa maneiras e produziu uma faixa sozinho. Marco Gerez, Mauricio Fleury, Gustavo Ruiz, Bruno Buarque, Guizado, Edy Trombone, os meninos Do Amor: Ricardinho Dias Gomes, Marcelinho Callado e Gustavo Benjão. Lucas Vasconcellos, David Cole. Morotó Slim do Retrofoguetes. Poxa, acho que vou esquecer alguém….

Eu produzi o disco. O Gilberto Monte produziu uma faixa. Em duas faixas o Bruno Buarque co-produziu, em uma o Guizado e em seis o Chico Neves. Mas esse disco eu meti a mão em tudo mesmo. posso dizer que carrreguei debaixo do braço. Nove meses na barriga.

Você chegou há pouco de uma turnê na Europa e Sem Nostalgia foi muito bem recebido lá fora, certo? Alguma influência disso no álbum novo?

Foi muito surpreendente o que está rolando lá. Fomos o melhor disco de 2011 pelo jornal Liberation da França e o 6º melhor disco do ano pela Les Inrockuptibles, a Rolling Stone francesa. Ficamos por 3 meses no top 3 da WMCE, uma associação de rádios em 12 países da europa, tocamos no lendário programa do Gilles Peterson na BBC1, lotamos o Barbican Theatre, enfim, recebemos 5 estrelas em praticamente todas as importantes publicações de música da Europa, foi irado. Em 2012 vamos voltar para colher mais frutos.

Mas não influenciou em nada, quando fui o grosso do disco já tinha sido gravado.

Quando sai oficialmente? Quando rolam os shows? Já tá com banda formada?

Em Março eu acho. Shows a partir de março, abril, vai depender da tour na Europa e EUA também.

A banda de Sampa continua a mesma: Bruno Buarque na bateria, Betão Aguiar no baixo, Caetano Malta na guitarra, Mauricio Fleury nos teclados e vou procurar um músico para saltar os samples. O Bruno fazia isso, mas acho melhor ter alguém só para isso. Já tenho uns nomes na cabeça, vou correr atrás.

A banda do Rio continua a mesma também: Ricardo Dias Gomes no baixo, Gustavo Benjão na guitarra, Marcelo Callado (Do Amor) na bateria, Lucas Vasconcellos (Letuce) no synth e David Cole nos dubs e samples. A da Bahia é Seco Grave no baixo, Junix 11 no synth e guitarra, Mangaio no samples e synth, Robertinho Barreto (Baiana System) na guitarra e Jorge Dubman na bateria.

Você comentou que “o disco quase não tem situações ficcionais”. Não que seus discos anteriores não tivessem também uma certa aura totalmente própria e dentro do seu universo, mas O Deus…, definitivamente, é seu álbum mais pessoal, certo? Em algum momento houve algum receio se expor, falar sobre o mais íntimo, mostrar a alma – ou isso foi alimento criativo?

Sim, sem dúvida. Meus discos e consequentemente as canções dos discos nasciam de uma idéia musical, se adequavam a ela. Nesse as canções vieram primeiro e foram determinantes para eu entender que havia um novo disco. Tudo partiu delas.

Na criação não houve e nem pode haver medo ou receio. No lançamento é que rolou isso, porque nas primeiras entrevistas eu fui muito franco, e é complicado falar das coisas íntimas porque envolvem outras pessoas. Aprendi sobre isso nesse lançamento. Mas ao mesmo tempo acho frio quando você precisa esconder as coisas.

Se você pegar entrevistas mais antigas poderá ver como era interessante a franqueza em falar das suas dificuldades e problemas. Mas não pode mais ser assim porque grande parte do jornalismo foi para esse lado paparazzi, ou seja, a novelinha do assunto passa a ser mais interessante do que o que ela trata.

Ao mesmo tempo, discos de fim-de-relacionamento, se podemos criar essa categoria e agrupar clássicos da sensibilidade sincera, sempre vem com um vigor extra, até mais sexualidade. Mais uma vez, não que seus discos anteriores não tivessem uma sensualidade, mas O Deus… traz uma certa safadeza em primeiro plano, com “Músico”, “Jogos madrugais” (mesmo não sendo sobre isso, mas com suas sugestões), o desejo latente de “Para onde irá essa noite?” etc. Só uma observação, mas queria saber: faz sentido?

Acho que isso é que nem poesia, cada um coloca seu ser pessoal na interpretação.

“Músico” eu gravei porque sabia que “O Deus…” abriria o disco, e como a música tem uma carga dramática muito forte, queria que a segunda música servisse como um raio de sol, uma abertura. E nada melhor que essa letra do Tom Zé, que diz “ligue-se o éden, som e maçã”. Vejo ela mais como um paraíso espiritual do que como um purgatório da sacanagem, hahahaha.

“Jogos Madrugais” eu fiz depois de uma noitada jogando videogame num hotel em BH. Depois de pronta é que percebi que parecia a descrição de uma noitada de sexo e drogas.

Esse disco não é sobre o fim de relacionamento. Ele toca nisso também, mas envolve outras questões sobre a vida após isso.

Muito legal o som encontrado com os Do Amor. Melhor timbre e linha de baixo de todos os tempos no “Para onde irá essa noite?” Você chegou a ensaiar muito com Ricardinho, Marcelo, Benjão, Lucas ou a gravação foi mais no susto? E, aliás, por que eles?

Ricardo Dias Gomes é um grande músico. Temos um entendimento muito fino, fui a primeira pessoa a chamar ele para tocar baixo numa banda. Ele era, e ainda é, pianista. Acho que a combinação do jeito dele tocar baixo com o baixo de luthier que ele tem é uma bomba atômica. Vale resaltar os baixos dele no CD 3 Sessions in a Greenhouse. Ele é genial, sem exageros.

A banda do Rio descrita acima, acrescentando o David Cole, gravou seis músicas do disco (Marcelo, sete). Fizemos alguns ensaios e quando fomos para o estúdio já estava tudo bem adiantado em termos do que cada um faria.

Eu gosto de tocar com eles porque tudo que eles tocam vem com uma sujeirinha do rock. Eles juntos não são uma perfeição de execução, e por isso mesmo acaba tendo essa sujeira boa. São todos muito musicais e criativos e na estrada nos divertimos muuuuuito. Já enfrentamos umas “turnês from hell” que só a brodagem e o bom convívio superam.

“Se pá, ska” é especial, hit total. A inspiração foi São Paulo, é isso? Você escreveu a canção pensando na cidade, nos amigos e papos daqui, nas relações?

Sim, foi o convívio com meus amigos daqui de São Paulo. Eu me sinto muito bem em São Paulo porque 99% dos amigos daqui são músicos ou trabalham nesse universo. A maioria deles tem estúdio, então estar aqui é sempre produtivo, sempre estou bem perto da música de uma maneira produtiva.

Pensei muito nessa solidão de São Paulo, que é algo que está acima de todos, como uma entidade da cidade. Acho que por isso as celebridades não se fazem aqui, em SP todo mundo vira a mesma coisa, uma massa que a cidade recebe e tritura. A cidade chapa todo mundo numa condição existencial solitária. E é o encontro com os amigos que salva todo mundo dessa solidão. sentar na mesa para comer e papear, com isso um olha para o outro e reconhece a sua existência, tirando todos da solidão que nos acompanha da “barriga até o caixão”.

Gosto muito do refrão em inglês que fala que assim como de repente nos damos conta que já somos adultos, as cidades também vão crescendo desordenadamente de uma maneira louca e ela vai se despedindo dos velhos e vendo os novos chegando. Pensei no meu filho, de como daqui a pouco ele vai “ganhar” a cidade com os amigos, redescobri-la, reinventá-la, enquanto nós ficaremos mais velhos e aos poucos cederemos esses espaços para eles. As cidades são esse eterno moto contínuo.

Fiquei impressionado com “Contravento”, no Caravana Sereia Bloom. Música linda, e que achado poético bonito a ideia do som do vento, menino, batendo no rosto na janela. Me fez pensar no poder de uma composição: congelar o tempo, fotografar uma cena, ampliar uma ideia. É uma parceria com o Gui Amabis, foi algo também nascido do disco dele?

Não, ele me chamou para fazer essa música para o disco da Céu. Ele tinha o pedaço da letra que falava da poeira que sobe e rasga a pele etc, ele já veio com essa idéia de estrada por conta do mote do disco. Dai pensei naquele começo que é ao mesmo tempo cinematográfico e mental. De você estar no carro em movimento, vendo a paisagem estática passando, e ao mesmo tempo que seu olho vaga sua cabeça não para de pensar milhões de coisas. E isso também é uma maneira de distrair o tempo, já que muitas vezes a viagem é longa. Também fiquei bem contente com o resultado dessa música. Já é a segunda parceria com o Gui que fica boa.

Também sobre o Caravana, pergunta direta: qual foi a inspiração para “Streets Bloom”? Ela foi composta na mesma época das canções d’O Deus…? Tem um certo ar londrino de “Nine out of ten” do século XXI…

Um pouco depois, fiz sob encomenda da patroa, hahahaha. Esse ar que você falou é porque é um reggae em 3, e isso é raro. Fora “Nine out of ten” só me recordo de “Extra”, de Gil. Como o disco era nessa pegada on the road, pensei numa letra que fosse a Céu voltando para São Paulo e recordando a viagem que fez. A letra descreve isso.

Tínhamos pensado numas descrições piscodélicas da viagem, mas eu preferi falar sobre coisas que são reais e ao mesmo tempo muito loucas. Como aquela boate na Holanda, cuja eletricidade é fornecida pelo impacto das pessoas dançando em cima da pista de dança. Ou sobre novos tijolos produzidos na Amazônia que são feitos a partir dos dejetos da floresta.

Aproveito a conexão londrina para perguntar de onde veio essa ideia de regravar o My Tiger My Timing? De onde você conheceu a banda?

Ouvi o clipe dessa música no URBe e pirei nela. Sempre que pinta uma banda de rock branca usando elemento de música africana eu piro. É uma espécie de vingança pessoal, hahahahaha! Então fiz uma versão para ela e “azeitei” mais o groove, trouxe para os trópicos. A letra da minha versão é meio Donkey Kong, o cara passa por milhões de dificuldades para salvar a princesa da prisão e ganhar seu coração. A princípio ela se chamava “São Joguinho”, pois parecia uma reza, como o Jorge Ben fez em “Meu Glorioso São Cristovão”. A Anna Dantes que deu esse nome. Mas quando tocamos a primeira vez ao vivo um cara disse: “adorei aquela música do ‘Paladino e seu cavalo altar'”. Ai não tive dúvida que deveria se chamar assim.

Concluindo, pensando em “Paladino” e “Jogos madrugais”, preciso saber: qual o videogame e qual o(s) jogo(s) que tanto te enfeitiçaram e inspiraram nesses tempos?

Hahaha, o “Paladino” acabei de descrever. Em “Jogos” tenho até vergonha de dizer, mas foi uma versão para MAC do clássico Space Invader. :p

Melhores de 2011: Décio 7

Conjunto Baluartes – Nira Congo (1976)
Hypnotic Brass Essemble – The Brothas (2008)
Woima Collective – Tezeta (2010)
Sebastião Tapajós e Pedro dos Santos Vol.2 (1972)
Gilberto Gil – Refavela (1977)
Ariya Astrobeat Arkestra (2010)
Erasmo Carlos – Sonhos e Memórias 1941-1972 (1972)
Victor Rice – In America (2003)
Pipo Pegoraro – Taxi Imã
Hugh Mundell – Africa Must Be Free By 1983 (1978)
Baden Powell À Vontade (1963)
————————————————————————————————————————
Em 2011 Décio 7 lançou o álbum de estreia do Bixiga 70, além de tocar em Taxi Imã, de Pipo Pegoraro.
————————————————————————————————————————
Mais melhores de 2011 por aqui.

Bem Gil fala sobre Gilberto Gil 1968

Também dentro do especial dia dos pais da série DNA Musical, artistas comentando discos importantes pra eles, no site do Oi Novo Som, Bem Gil – do Tono etc – comenta o segundo álbum solo de Gilberto Gil, o tropicalista, aquele com Duprat e Mutantes e capa do Rogério Duarte. Assim, logo abaixo.

O primeiro disco do Gil que me lembro de ter ouvido é o “O Eterno Deus Mu Dança”. Eu tinha 4 anos de idade quando esse disco foi lançado e, a partir de então, tenho memórias muito vivas de todos os trabalhos subsequentes.

Mas foi só aos 16 anos de idade que resolvi escutar toda discografia do meu pai em ordem de lançamento. Ouvi seu primeiro disco “Louvação” e resolvi, finalmente, pegar num violão pela primeira vez. E daí por diante, a cada disco que eu ouvia, uma nova paisagem se apresentava e minha vida mudava de novo e de novo.

Eleger um dele como o “disco que eu tocaria na íntegra” é difícil, mas a minha escolha, hoje, seria o segundo disco do Gil, de 1968, com a participação dos Mutantes.

É um disco que logo de cara me chamou a atenção pela espontaneidade. Gil resolveu (através de Rogério Duprat, seu arranjador) convidar os Mutantes para participar do disco e fez um álbum de “banda”. O que acabou se transformando em característica presente em vários de seus discos seguintes.

No sentido da “minha execução integral desse disco”, os Mutantes pesam muito pois são uma referência musical muito forte pra mim e pro Tono (banda com a qual exerço música desde a criação até a execução, em discos e shows).

Esse é o disco mais tropicalista do Gil, e um dos mais bonitos de todos os discos tropicalistas. As composições (poéticas) vão desde temas urbanos (“Domingou”), rurais (“Coragem pra Suportar”) e políticos (“Marginalia II”) até o resgate do folclore como em “Pega a Voga, Cabeludo”. Com a regravação de “Procissão” (presente no disco anterior), Gil didatiza o manifesto tropicalista, deixando os Mutantes a vontade para recompor a música sem qualquer tipo de limite estético/musical.

Apesar de tudo isso o que mais me chama a atenção pra esse disco é que “Luzia Luluza” é uma das gravações mais bonitas em todo repertório discográfico do Gil. É um conto tropicalista levado a Hollywood pela orquestração do Rogério Duprat. É lindo.”Pé da Roseira” é uma música que não me canso de ouvir.

E o disco fecha com “Domingo no Parque”. Música que dispensa qualquer tipo de apresentação/comentário e que foi apresentada pela primeira vez em público no festival de 67, ao lado dos Mutantes, e com regência do Rogério Duprat. Com certeza o pontapé inicial pra que este disco fosse lançado no ano seguinte.

Caetano e Gil na Ilha de Wight, 1970

Quando partiram do Brasil em julho de 1969, primeiro para Portugal, depois para a França, Caetano Veloso e Gilberto Gil já davam o tropicalismo como morto. Foi angustiante, mas de certa maneira também libertador: focaram ainda mais na beleza das canções e força dos happenings, passaram a compor em inglês e ampliaram a visão cosmopolita. Quando afinal se decidiram por Londres – e lá moraram pelos dois anos seguintes -, tiveram acesso direto ao pop global da época, em mais de um sentido.

Ainda em 1969 foram à segunda edição do Festival da Ilha de Wight e viram Bob Dylan ao vivo. No ano seguinte, em 1970, foram lá assistir Jimi Hendrix e Miles Davis. O show de Miles, com uma única música, chamada “Call it anything”, trazia Airto Moreira na percussão e na versão lançada em DVD dá até pra ver o Gil na plateia assistindo.

De repente, logo depois do show do Miles, ouviu-se ao microfone: “Brazilian composers Gilberto Gil and Caetano Veloso, invited to the backstage by Miles Davis!” Eles atravessaram as 600 mil pessoas e chegaram ao camarim, onde encontraram o responsável pelo chamado, Airto, e conheceram Miles.

No terceiro dia do festival, viraram atração e subiram ao palco com mais de uma dezena de brasileiros (Gal e os músicos d’A Bolha também estavam no festival com eles) para cantar algumas das novas canções em inglês e protagonizar um happening que envolvia uma roupa coletiva de plástico vermelho (criação de uma artista plástica francesa) e fim apoteótico com vários nus no palco.

A reação foi um público “delighted” e uma crítica na revista Rolling Stone dizendo que, em comparação àquilo, o que havia acontecido nos dias anteriores era simples “psychedelic muzak”. A primeira nota na imprensa americana a respeito de Caetano e Gil.

Quando fomos à Bahia há pouco, Caetano comentou que lembrava detalhes da nota na Rolling Stone de memória, mas nunca mais a tinha visto, que aquilo tinha que ser encontrado. Aceitando o desafio, Paulo Terron, editor da RS brasileira, fez a busca e encontrou:

Via.

(Foto daqui.)

uma forma antropofágica de relação com a cultura

Em agosto de 1968, Caetano e Gil integravam um espetáculo da empresa têxtil Rhodia e planejavam como injetar mais Tropicália no zeitgeist da música brasileira. Um dos grandes projetos era o especial de TV Vida Paixão e Banana do Tropicalismo, escrito por Torquato Neto e José Carlos Capinan para a Rede Globo, com grandioso elenco e anarquias a granel.

Nunca foi o planejado (a Rhodia quis mexer, depois não quis patrocinar, depois a Globo adiou várias vezes a exibição), mas na noite de 23 de agosto de 1968, foi registrado o piloto, na gafieira Som de Cristal, na rua Rêgo Freitas, centro de São Paulo. Detalhe muito simbólico é que Vicente Celestino, que passou a tarde no estúdio ensaiando para sua participação, morreu à noite, logo antes de começarem a gravação – primeira vítima fatal da Tropicália.

O que finalmente foi ao ar, no dia 27 de setembro, levou o nome de Direito de Nascer e Morrer do Tropicalismo, hoje só na memória de quem assistiu ou estava presente. Pra posteridade, logo abaixo, as 14 páginas do roteiro original de Torquato e Capinan, com aparições de Chacrinha, Aracy de Almeida, Linda e Dircinha Batista, Nara Leão, Tom Zé, Gal Costa, Grande Otelo, Os Mutantes, Rogério Duprat, Jorge Ben e Dalva de Oliveira – todos presentes na gravação em carne e osso.








___________________________________________________________________________________________________

Roteiro via.
___________________________________________________________________________________________________

Fela Kuti & Carlos Moore

Fela Kuti era uma força da natureza. O músico e ativista nigeriano, presente no planeta entre os anos de 1938 e 1997, lançou mais de 70 discos, lutou contra o governo, teve 27 esposas (ao mesmo tempo), fundou sua própria república e influenciou o mundo com seu próprio gênero musical inventado, o afrobeat.

Carlos Moore, cientista político e etnólogo, cubano exilado, com Fela conviveu nos anos 70 e em 1981 escreveu a única biografia autorizada do músico, Fela – Esta Vida Puta, que sai agora pela primeira vez em português, com prefácio de Gilberto Gil.

Para marcar, neste sábado acontece evento de lançamento com presença de Moore, filme do Fela, DJs e apresentação da banda Bixiga 70, na Matilha Cultural, São Paulo. Informações aqui.

Escrevi matéria inicial com Carlos na Folha Ilustrada e hoje no UOL Música outra, contando essa história inteira, com ele falando do afrobeat e pequenas observações minhas sobre a música de Fela na de Gil, Céu, Criolo, Marisa Monte e Bixiga 70.

AQUI ou seguindo abaixo.
___________________________________________________________________________________________________

Biografia revela música e vida de Fela Kuti, criador do afrobeat

Fela Kuti era uma força da natureza. O músico e ativista nigeriano, presente no planeta entre os anos de 1938 e 1997, influenciou o mundo, lançou mais de 70 discos, lutou contra o governo, teve 27 esposas (ao mesmo tempo), fundou sua própria república e inventou seu próprio gênero musical, o afrobeat.

Sua inacreditável história, que recentemente rendeu o grandioso musical “Fela!” (financiamento do rapper Jay-Z, três prêmios Tony, sucesso na Broadway e Londres), só poderia mesmo ser contada de uma maneira próxima e particular.

Lançada originalmente em 1982, a biografia “Fela – Esta Vida Puta” foi resultado da experiência do cientista político cubano Carlos Moore, que durante a década de 70 sustentou amizade próxima com Fela. Hoje morando em Salvador, Moore conta que na época morava no Senegal e ia a Lagos três ou quatro vezes por ano visitar o amigo em sua República Kalakuta, na maior cidade nigeriana.

“Na primeira vez que fui à Nigéria, na primeira semana, fui num mercado e ouvi a música do Fela”, lembra o autor da biografia. “Fiquei louco e comecei a perguntar quem era o cara que tinha feito aquela música, onde eu poderia comprar. Me responderam que não, eu não podia, aquela música estava proibida. Aí eu me interessei ainda mais”, ri.

“Até que amigos uma noite me levaram lá para conhecê-lo”, conta. “Ele me disse, ‘bem vindo, Carlos, a essa merda que chamam de Nigéria’. Começamos a rir e foi amor à primeira vista. Isso foi em fevereiro de 74.”

Consequência da intimidade, escrita em primeira pessoa do ponto de vista do músico, a biografia é uma passagem para a cabeça de Fela, em todo seu poder de raciocínio – do polêmico ao revolucionário. A primeira edição brasileira, lançada pela Editora Nandyala, traz prefácio de Gilberto Gil e um epílogo atualizado do autor.

Neste sábado, na Matilha Cultural (rua Rêgo Freitas 542, Centro), em São Paulo, ocorre evento de lançamento do livro, com presença de Carlos Moore, vindo da Bahia, exibição do filme “Music Is the Weapon” (1982) — documentário de 53 minutos sobre a vida do músico, dirigido por Jean-Jacques Flori e Stephane Tchalgadjieff — e apresentações da banda paulistana de afrobeat Bixiga 70 e do coletivo de DJs que tocam na Festa Fela, homenagem anual a Kuti. Começa às 18h e a entrada é um agasalho.

Afrobeat, gênero e linguagem
Saxofonista, pianista, cantor, Fela considerava o afrobeat como “música clássica africana”. A sonoridade única que desenvolveu vinha de sua alta musicalidade e talento para a fusão de profundas tradições negras, africanas, com elementos como o jazz de Miles Davis e o funk de James Brown sob leituras próprias.

“Olha, a coisa está clara”, diz Moore. “Miles Davis falou: ‘Nós criamos estilos de músicas, mas Fela criou um gênero!’ Ele encontrou uma linguagem. No século 20, Fela é o único artista que pode dizer que criou um gênero musical.”

Gênero musical que parece ter encontrado seu ponto máximo de desenvolvimento em tempos recentes, com formações por todo o mundo prestando tributo ao som e às composições de Fela Kuti. Ironicamente, Fela jamais se repetia — tudo era sempre criado na hora.

“É como se ele tivesse descoberto um universo e simplesmente vivia dentro dele”, analisa o biógrafo e etnólogo. “Ele nunca tocava a mesma música novamente. Havia encontrado uma riqueza de ouvir e interpretar a música em um universo de criação onde não precisava repetir-se.”

Bateria polirrítmica, percussão acentuando os contratempos, diálogos de baixo e guitarra, solos de piano elétrico e saxofone intenso, vocais de chamado-e-resposta. Hoje os elementos do afrobeat se tornaram parte da linguagem musical do século 20. Mas enquanto Fela estava presente seu poder de criação era tão amplo e único que chegava a intimidar, tributos não eram tão comum.

“Essa sempre foi a dificuldade do afrobeat”, nota Moore. “Ninguém mais ouvia o que ele estava ouvindo, sabia de onde vinha aquilo, ninguém mais podia tocar aquela música. Veja que todas as orquestras de afrobeat só existem depois que Fela morre. Foi a morte de Fela que liberou o afrobeat.“

A música de Fela, a arma de Fela, vive.

João pela primeira vez

Incrível como todo mundo da geração 60 se lembra exatamente de quando ouviu João Gilberto pela primeira vez. Não só eles: de antes e até hoje, o som de João é algo único, impactante de tão claro e definido em si mesmo. Desde a época em que era o último lançamento e você podia ouvir sua música no rádio ou nos ainda novos LPs de vinil e vitrolas até hoje, em que abundam relançamentos piratas (digamos, “extraoficiais”) em CD e vinil e mp3s de discos e shows pela rede, João continua soando moderno e atemporal. Você se lembra de quando ouviu a música de João Gilberto pela primeira vez? Caetano, Gal e Gil lembram.

Algumas lembranças que compilei para matéria no UOL Música:

Gilberto Gil, em depoimento a Zuza Homem de Mello, 1968: Em 1959 eu estava na Bahia e um dia ouvindo rádio, ouvi um disco do João Gilberto: fiquei assustado quando ouvi aquilo, parece que era “Morena Boca-de-Ouro”, ouvi aquilo cantado de uma maneira estranha, com um acompanhamento estranho e fiquei realmente chocado. Me lembro que era um dia em que eu voltava da aula, eram duas horas da tarde, tinha acabado de almoçar e tinha ligado a Rádio Bahia. Não sabia de nada que estava acontecendo no Rio e de repente ouvi aquela coisa. Fiquei sabendo que era o João Gilberto porque telefonei para a rádio perguntando o que era aquilo, quem estava cantando aquele troço, disseram que era o João, eu fui à loja de discos procurar, ainda não tinha chegado, mas quando chegou eu comprei, foi aquela paixão absoluta, momentânea e total pela coisa, foi uma paixão que me tomou durante todos aqueles anos subsequentes.

Caetano Veloso em “Verdade Tropical”, 1997: Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: “Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro”. Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título da canção “Desafinado” – uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras, pedindo tolerância para aqueles que não o eram. A bossa nova nos arrebatou. Em Santo Amaro nós cultuávamos João Gilberto em frente a um boteco modesto que chamávamos “bar de Bubu”, por causa do nome do preto gordo que era seu dono. Ele comprar o primeiro LP de João, Chega de Saudade – o disco inaugutal do movimento -, e tocava-o repetidas vezes. Primeiro, por ele próprio gostava , e, depois, porque saia que nós íamos ali para ouvi-lo.

Gal Costa em entrevista a Ronaldo Evangelista, 2010: Eu era uma menina e ouvia tudo que se tocava nas rádios. Eu ouvia Angela Maria, Dalva de Oliveira, ouvia Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. Eu gostava das coisas legais, via todo mundo – Sarah, Ella, Betty Carter, Chet Baker, Frank Sinatra, Ray Charles, Louis Armstrong. Mas o dia em que ouvi João Gilberto cantando “Chega de saudade” foi um impacto profundo e uma atração imediata. Era uma coisa totalmente estranha e nova naquela época, mas eu abracei aquilo com paixão. Mudou a minha vida, ali eu reaprendi a cantar. Sou autodidata, sempre soube tudo de canto sem nunca ter ido escola. Respiração, diafragma, técnica vocal, divisão rítmica da poesia, da palavra cantada, respiração. Ouvia João muito atentamente, com muita paixão. E comecei a estudar emissão vocal em casa. No banheiro, com panela, com meu eco, reverberação, comecei a estudar, prestava atenção a tudo. João Gilberto é minha grande referência.

Chico Buarque, em entrevista a Almir Chediak, 1999: Quando apareceu Chega de Saudade, foi um choque tremendo, me lembro perfeitamente. Ficava horas, a tarde inteira ouvindo aquilo, ouvindo, ouvindo, ouvindo… Conhecia o violão de João Gilberto desde o disco da Elizeth Cardoso, Canção do amor demais, um disco que freqüentou muito a Telefunken dos meus pais. João tocou violão em duas faixas, “Outra vez” e “Chega de saudade”. Mas a gravação de João Gilberto era diferente. Eu nem sabia que “Chega de saudade” era do Tom Jobim, tanto que, ao pedir dinheiro aos meus pais para comprar o disco, disse que a música era do Vinicius de Moraes, o autor da letra e amigo do meu pai. Ouvia Chega de Saudade sem parar. Eu e um amigo meu de rua ficávamos ali, com violão, tentando decifrar a batida e as harmonias de João. Quando saiu o primeiro long-play do João Gilberto, a gente repetia “Aos pés da cruz” não sei quantas vezes na tentativa de fazer aquela introdução. Por morar em São Paulo, eu levava uma desvantagem em relação ao pessoal do Rio. Não havia televisão na minha casa. De vez em quando, chegava um amigo, dizendo: “Vi aquele cara esquisito que você gosta na televisão.” João Gilberto apareceu como uma coisa misteriosa. Ele era diferente de tudo até para um jovem de 18 anos. Eu tinha 14 anos e, na época, ter quatro anos a menos significava uma diferença brutal.

Roberto Carlos, do livro “Roberto Carlos em Detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo, 2006: Numa tarde de sábado Roberto Carlos chegou cansado e desanimado à sua casa no subúrbio de Lins de Vasconcelos. E de repente, uma voz e um violão irromperam no rádio: “Vai minha tristeza e diz a ela / que sem ela não pode ser / diz-lhe numa prece que ela regresse / porque eu não posso mais sofrer / chega de saudade…” E então tudo lhe pareceu novo outra vez. Era João Gilberto e a bossa nova chegando para iluminar os caminhos de Roberto Carlos – e de toda uma geração de cantores, compositores, arranjadores, músicos. Para Roberto, aquilo foi literalmente uma revelação. A sala de sua casa foi iluminada pela voz e o violão de João Gilberto antando a recém-gravada “Chega de Saudade”, de Tom e Vinicius. O fraseado sincopado do cantor e os incríveis jogos rítmicos entre voz e violão deixaram o garoto encantado. “Nunca tinha ouvido nada parecido antes. A forma de ele cantar, a colocação da voz, a emissão, a afinação, a divisão, tudo ali era perfeito. Quando ouvi João Gilberto, eu fiquei parado, porque aquilo era algo simplesmente maravilhoso.”

+Júlio Medaglia.

Introspecção mística

Fumar maconha nunca me fez mal em termos absolutos, em termos do que se pode julgar como mal, e nunca me levou a fazer mal. Isso é o que eu posso testemunhar como experimentador da coisa. Como homem que fez e faz a experiência de fumar. Eu acho que é importante, é uma coisa que foi culturalmente discutida em níveis profundos no mundo inteiro. Por que não no Brasil? Por que manter esse obscurantismo todo, esse medo da modernidade, esse medo da atualidade, esse medo de estar no mundo de hoje? Eu acho que eu sou mesmo um exemplo disso. Quer dizer, se você relaciona, faz a relação homem-maconha, mente-maconha, trabalho-maconha, criação-maconha, comportamento-maconha etc e assim por diante, e você busca todo esse relacionamento numa pessoa como eu, vê o quadro estatístico da minha produção, do meu comportamento e de tudo, você não pode a partir disso continuar imputando à maconha a maldição que ela tem.

O vídeo é trecho desse filme. A fala é dessa entrevista. E boa sorte pra ele na nova velha vida.