Fim de janeiro, começo de fevereiro, conversei com meu novo vizinho Lucas Santtana sobre seu especial disco novo, O Deus Que Devasta Mas Também Cura, para matéria na revista Rolling Stone, edição de março, nas bancas.
Hoje, às 21h, acontece show de lançamento do álbum, com participação de Letieres Leite, no Sesc Vila Mariana. O disco, pode pegar aqui. Logo abaixo, o vídeo da faixa-título, direção de Daniel Lisboa, Diego Lisboa e Matheus Vianna.
Na sequência, todo o papo com Lucas, altas ideias, grandes pensamentos, vários insights e algumas histórias de processo, inspiração, composição e situação do disco novo, o novo da Céu, o álbum do Gui Amabis, amigos músicos, São Paulo, a gringa, amor, amizade, sinceridade & videogame.
O disco novo é um disco “de canções”? Tem algum conceito maior por trás ou alguma ideia que amarra tudo?
Meus discos são sempre discos de canções, só que acabo me divertindo mesmo é em encontrar as camadas de som para vesti-las. Todos os meus discos são assim, e por coincidência todos acabaram tendo alguma coisa que os amarraram. Gosto disso porque ainda gosto da idéia do álbum, como um livro contando uma história em varios capítulos. Os capitulos nao deixam de ser independentes, mas sao parte de um todo. O pessoal até já fica perguntando: qual será o tema no próximo disco? etc. Eu só não quero que isso se torne uma obrigação.
O que amarrou esse disco foi que 80% das canções foram feitas num periodo de dois meses, um tempo depois da minha separação. Fiz umas 15 a 20 músicas nesses dois meses e separei oito delas para o disco. Tive uma necessidade enorme de descrever o que se passava na minha frente, o disco quase não tem situações ficcionais. E as que tem foram inspiradas em fatos reais.
Outra coisa que amarra são as camadas sinfônicas, ora tocadas, ora sampleadas. Foi um reencontro com a minha adolescência, quando ouvia e tocava música clássica. Havia parado de ouvir esse repertório musical, mas de um ano para cá tava ouvindo bastante e acabou contaminando totalmente o disco.
Só aí me toquei como essa informação auditiva na minha adolescência contaminou o modo que produzo música. O que é o repertório de orquestra senão um monte de camadas e mais camadas que se alternam o tempo todo? É um dub de camadas se alternando, só não tem ecos e reverbs, hahahaha.
A faixa título, “O Deus que devasta mas também cura”, saiu em 2011 em uma versão no disco do Gui Amabis, Memórias Luso/Africanas. Foi parte do processo do álbum novo?
Então, o start do disco se deu quando o Gui me deu a base dessa música para fazer a melodia e a letra. Acho a versão dele linda, e minha voz na gravação dele ainda traz muita tristeza. Quando gravei a minha versão já estava numa fase mais de contemplativa, e chamei o Letieres Leite e alguns membros da Orkestra Rumpilezz para não ficar para trás, hahahahaha.
Você gravou onde? Quem produziu? Quais as participações mais legais?
Gravei em vários estúdios em São Paulo, Rio e Bahia. Em São Paulo basicamente no Minduca do Bruno Buarque e na Toca do Calvo do Gui Amabis. Mixei com o Buguinha Dub no Studio Mundo Novo e Masterizei com o Lenza na Yb.
Tem muitas participações, quase todo mundo que tocou eu considero participações especiais. Céu, Curumin, Gui, Rica Amabis, Gilberto Monte, que fez várias coisa maneiras e produziu uma faixa sozinho. Marco Gerez, Mauricio Fleury, Gustavo Ruiz, Bruno Buarque, Guizado, Edy Trombone, os meninos Do Amor: Ricardinho Dias Gomes, Marcelinho Callado e Gustavo Benjão. Lucas Vasconcellos, David Cole. Morotó Slim do Retrofoguetes. Poxa, acho que vou esquecer alguém….
Eu produzi o disco. O Gilberto Monte produziu uma faixa. Em duas faixas o Bruno Buarque co-produziu, em uma o Guizado e em seis o Chico Neves. Mas esse disco eu meti a mão em tudo mesmo. posso dizer que carrreguei debaixo do braço. Nove meses na barriga.
Você chegou há pouco de uma turnê na Europa e Sem Nostalgia foi muito bem recebido lá fora, certo? Alguma influência disso no álbum novo?
Foi muito surpreendente o que está rolando lá. Fomos o melhor disco de 2011 pelo jornal Liberation da França e o 6º melhor disco do ano pela Les Inrockuptibles, a Rolling Stone francesa. Ficamos por 3 meses no top 3 da WMCE, uma associação de rádios em 12 países da europa, tocamos no lendário programa do Gilles Peterson na BBC1, lotamos o Barbican Theatre, enfim, recebemos 5 estrelas em praticamente todas as importantes publicações de música da Europa, foi irado. Em 2012 vamos voltar para colher mais frutos.
Mas não influenciou em nada, quando fui o grosso do disco já tinha sido gravado.
Quando sai oficialmente? Quando rolam os shows? Já tá com banda formada?
Em Março eu acho. Shows a partir de março, abril, vai depender da tour na Europa e EUA também.
A banda de Sampa continua a mesma: Bruno Buarque na bateria, Betão Aguiar no baixo, Caetano Malta na guitarra, Mauricio Fleury nos teclados e vou procurar um músico para saltar os samples. O Bruno fazia isso, mas acho melhor ter alguém só para isso. Já tenho uns nomes na cabeça, vou correr atrás.
A banda do Rio continua a mesma também: Ricardo Dias Gomes no baixo, Gustavo Benjão na guitarra, Marcelo Callado (Do Amor) na bateria, Lucas Vasconcellos (Letuce) no synth e David Cole nos dubs e samples. A da Bahia é Seco Grave no baixo, Junix 11 no synth e guitarra, Mangaio no samples e synth, Robertinho Barreto (Baiana System) na guitarra e Jorge Dubman na bateria.
Você comentou que “o disco quase não tem situações ficcionais”. Não que seus discos anteriores não tivessem também uma certa aura totalmente própria e dentro do seu universo, mas O Deus…, definitivamente, é seu álbum mais pessoal, certo? Em algum momento houve algum receio se expor, falar sobre o mais íntimo, mostrar a alma – ou isso foi alimento criativo?
Sim, sem dúvida. Meus discos e consequentemente as canções dos discos nasciam de uma idéia musical, se adequavam a ela. Nesse as canções vieram primeiro e foram determinantes para eu entender que havia um novo disco. Tudo partiu delas.
Na criação não houve e nem pode haver medo ou receio. No lançamento é que rolou isso, porque nas primeiras entrevistas eu fui muito franco, e é complicado falar das coisas íntimas porque envolvem outras pessoas. Aprendi sobre isso nesse lançamento. Mas ao mesmo tempo acho frio quando você precisa esconder as coisas.
Se você pegar entrevistas mais antigas poderá ver como era interessante a franqueza em falar das suas dificuldades e problemas. Mas não pode mais ser assim porque grande parte do jornalismo foi para esse lado paparazzi, ou seja, a novelinha do assunto passa a ser mais interessante do que o que ela trata.
Ao mesmo tempo, discos de fim-de-relacionamento, se podemos criar essa categoria e agrupar clássicos da sensibilidade sincera, sempre vem com um vigor extra, até mais sexualidade. Mais uma vez, não que seus discos anteriores não tivessem uma sensualidade, mas O Deus… traz uma certa safadeza em primeiro plano, com “Músico”, “Jogos madrugais” (mesmo não sendo sobre isso, mas com suas sugestões), o desejo latente de “Para onde irá essa noite?” etc. Só uma observação, mas queria saber: faz sentido?
Acho que isso é que nem poesia, cada um coloca seu ser pessoal na interpretação.
“Músico” eu gravei porque sabia que “O Deus…” abriria o disco, e como a música tem uma carga dramática muito forte, queria que a segunda música servisse como um raio de sol, uma abertura. E nada melhor que essa letra do Tom Zé, que diz “ligue-se o éden, som e maçã”. Vejo ela mais como um paraíso espiritual do que como um purgatório da sacanagem, hahahaha.
“Jogos Madrugais” eu fiz depois de uma noitada jogando videogame num hotel em BH. Depois de pronta é que percebi que parecia a descrição de uma noitada de sexo e drogas.
Esse disco não é sobre o fim de relacionamento. Ele toca nisso também, mas envolve outras questões sobre a vida após isso.
Muito legal o som encontrado com os Do Amor. Melhor timbre e linha de baixo de todos os tempos no “Para onde irá essa noite?” Você chegou a ensaiar muito com Ricardinho, Marcelo, Benjão, Lucas ou a gravação foi mais no susto? E, aliás, por que eles?
Ricardo Dias Gomes é um grande músico. Temos um entendimento muito fino, fui a primeira pessoa a chamar ele para tocar baixo numa banda. Ele era, e ainda é, pianista. Acho que a combinação do jeito dele tocar baixo com o baixo de luthier que ele tem é uma bomba atômica. Vale resaltar os baixos dele no CD 3 Sessions in a Greenhouse. Ele é genial, sem exageros.
A banda do Rio descrita acima, acrescentando o David Cole, gravou seis músicas do disco (Marcelo, sete). Fizemos alguns ensaios e quando fomos para o estúdio já estava tudo bem adiantado em termos do que cada um faria.
Eu gosto de tocar com eles porque tudo que eles tocam vem com uma sujeirinha do rock. Eles juntos não são uma perfeição de execução, e por isso mesmo acaba tendo essa sujeira boa. São todos muito musicais e criativos e na estrada nos divertimos muuuuuito. Já enfrentamos umas “turnês from hell” que só a brodagem e o bom convívio superam.
“Se pá, ska” é especial, hit total. A inspiração foi São Paulo, é isso? Você escreveu a canção pensando na cidade, nos amigos e papos daqui, nas relações?
Sim, foi o convívio com meus amigos daqui de São Paulo. Eu me sinto muito bem em São Paulo porque 99% dos amigos daqui são músicos ou trabalham nesse universo. A maioria deles tem estúdio, então estar aqui é sempre produtivo, sempre estou bem perto da música de uma maneira produtiva.
Pensei muito nessa solidão de São Paulo, que é algo que está acima de todos, como uma entidade da cidade. Acho que por isso as celebridades não se fazem aqui, em SP todo mundo vira a mesma coisa, uma massa que a cidade recebe e tritura. A cidade chapa todo mundo numa condição existencial solitária. E é o encontro com os amigos que salva todo mundo dessa solidão. sentar na mesa para comer e papear, com isso um olha para o outro e reconhece a sua existência, tirando todos da solidão que nos acompanha da “barriga até o caixão”.
Gosto muito do refrão em inglês que fala que assim como de repente nos damos conta que já somos adultos, as cidades também vão crescendo desordenadamente de uma maneira louca e ela vai se despedindo dos velhos e vendo os novos chegando. Pensei no meu filho, de como daqui a pouco ele vai “ganhar” a cidade com os amigos, redescobri-la, reinventá-la, enquanto nós ficaremos mais velhos e aos poucos cederemos esses espaços para eles. As cidades são esse eterno moto contínuo.
Fiquei impressionado com “Contravento”, no Caravana Sereia Bloom. Música linda, e que achado poético bonito a ideia do som do vento, menino, batendo no rosto na janela. Me fez pensar no poder de uma composição: congelar o tempo, fotografar uma cena, ampliar uma ideia. É uma parceria com o Gui Amabis, foi algo também nascido do disco dele?
Não, ele me chamou para fazer essa música para o disco da Céu. Ele tinha o pedaço da letra que falava da poeira que sobe e rasga a pele etc, ele já veio com essa idéia de estrada por conta do mote do disco. Dai pensei naquele começo que é ao mesmo tempo cinematográfico e mental. De você estar no carro em movimento, vendo a paisagem estática passando, e ao mesmo tempo que seu olho vaga sua cabeça não para de pensar milhões de coisas. E isso também é uma maneira de distrair o tempo, já que muitas vezes a viagem é longa. Também fiquei bem contente com o resultado dessa música. Já é a segunda parceria com o Gui que fica boa.
Também sobre o Caravana, pergunta direta: qual foi a inspiração para “Streets Bloom”? Ela foi composta na mesma época das canções d’O Deus…? Tem um certo ar londrino de “Nine out of ten” do século XXI…
Um pouco depois, fiz sob encomenda da patroa, hahahaha. Esse ar que você falou é porque é um reggae em 3, e isso é raro. Fora “Nine out of ten” só me recordo de “Extra”, de Gil. Como o disco era nessa pegada on the road, pensei numa letra que fosse a Céu voltando para São Paulo e recordando a viagem que fez. A letra descreve isso.
Tínhamos pensado numas descrições piscodélicas da viagem, mas eu preferi falar sobre coisas que são reais e ao mesmo tempo muito loucas. Como aquela boate na Holanda, cuja eletricidade é fornecida pelo impacto das pessoas dançando em cima da pista de dança. Ou sobre novos tijolos produzidos na Amazônia que são feitos a partir dos dejetos da floresta.
Aproveito a conexão londrina para perguntar de onde veio essa ideia de regravar o My Tiger My Timing? De onde você conheceu a banda?
Ouvi o clipe dessa música no URBe e pirei nela. Sempre que pinta uma banda de rock branca usando elemento de música africana eu piro. É uma espécie de vingança pessoal, hahahahaha! Então fiz uma versão para ela e “azeitei” mais o groove, trouxe para os trópicos. A letra da minha versão é meio Donkey Kong, o cara passa por milhões de dificuldades para salvar a princesa da prisão e ganhar seu coração. A princípio ela se chamava “São Joguinho”, pois parecia uma reza, como o Jorge Ben fez em “Meu Glorioso São Cristovão”. A Anna Dantes que deu esse nome. Mas quando tocamos a primeira vez ao vivo um cara disse: “adorei aquela música do ‘Paladino e seu cavalo altar'”. Ai não tive dúvida que deveria se chamar assim.
Concluindo, pensando em “Paladino” e “Jogos madrugais”, preciso saber: qual o videogame e qual o(s) jogo(s) que tanto te enfeitiçaram e inspiraram nesses tempos?
Hahaha, o “Paladino” acabei de descrever. Em “Jogos” tenho até vergonha de dizer, mas foi uma versão para MAC do clássico Space Invader. :p