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Quem é Quem na Folha de S.Paulo, 1973

Idas a Paracambi e condições sentimentais abaladas: entre lembranças de Joões Donato e Gilberto tomando uma vitória no bar e inventando novas concepções harmônicas e as lindas observações sobre conteúdo emocional, sensitivo e musical de um artista que nunca vai deixar de evoluir, era pra ser uma crítica, mas que belo louvor, mesmo assim e por isso mesmo, Folha de S.Paulo, 26 de setembro de 1973. Era tanta novidade no Quem é Quem que assustava os tradicionalistas, história da vida de Donato. Tudo de novo pela primeira vez, criação espontânea, quinta e sexta debutando ao vivo.

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João Donato conta a João Gilberto sobre seu novo disco Quem é Quem, 1973

De Donas para Jonas, setembro de 1973, adorável carta detalhando o mágico processo de nascimento do disco “Quem é Quem“, ontem mesmo, há 40 anos, e agora só hoje dias 27 e 28 de fevereiro pela primeira vez ao vivo. Cada gol lindo, que nem é bom falar.

Donas-Jonas

Para o Jonas

“QUEM É QUEM” … é João DONATO

Tudo começou em Nova York ’72 quando encontrei com meus amigos Dom Um Romão (baterista) e Eumir Deodato (arranjador) – quando gravamos em 6 horas, 6 números instrumentais – gravação esta que atualmente está nas paradas de sucessos lá nos Estados Unidos, e se chama DONATO/DEODATO.

Chegando ao Brasil, na época do natal do ano passado, em um encontro casual com Agostinho dos Santos (na casa do Marcos Valle), papo vai – papo vem, Marcos resolveu me convidar para fazer um disco aqui no Brasil, que vem a ser justamente QUEM É QUEM… é JOÃO DONATO.

Dos 6 temas que gravamos nos E.E.U.U. DONATO/DEODATO, Agostinho sugeriu que acrescentássemos letras, que mais tarde ele mesmo iria gravar.

Começamos então a trabalhar todos os dias; eu, Marcos e Nana Caymmi – na seleção do material, modo de apresentação, letras para as músicas (quando então tive o prazer de conhecer meus parceiros Paulo Cesar Pinheiro, Geraldo Carneiro, João Carlos Pádua e até meu irmão Lysias Ênio), músicos para as gravações (quando tive a satisfação de rever alguns dos meus músicos favoritos e também de conhecer “novas aquisições”, como o guitarrista Hélio Delmiro, o baterista Lula, o percussionista Nana, o músico Novelli) – trabalho este que tendo começado em janeiro, só foi terminado em agosto deste ano.

Como se vê, é meu melhor trabalho em discos até o momento, tendo-se em conta o tempo o tempo que demorou, o que demonstra o máximo cuidado com que tudo aconteceu, e o resultado é um disco que sinceramente eu acho ADORÁVEL.

Técnica (Nivaldo e Toninho) parabéns; trabalho sério, com muito amor à coisas sérias (muito difícil acontecer). Love story. Enfim, vamos morrer todos abraçados, gritando ÔBA – como diz o produtor do meu próximo disco também para a ODEON, dr. Jorge Bernardo [Heimmachenflam] (o popular J. Canseira). Tempo estável, céu azul celeste, fim de linha, você é adorável. Você é indispensável… e isso acostuma.

Muito obrigado aos maestros Gaia, Dori Caymmi, Ian Guest e Tio (Laércio de Freitas), que fizeram as orquestrações exatamente como eu pedi nos meus arranjos.

Observem as 12 flautas nos números A RÃ e TERREMOTO (qualquer semelhança com uma feira na esquina de casa é simplesmente intencional) e é naturalmente uma coincidência eu estar compondo esta música momentos antes do último terremoto que abalou a cidade de Los Angeles. Rezei forte, e a reza está no disco. Até a voz da Evinha dizendo “estou com medo” está no disco.

Na música AMAZONAS, notem entre outras raridades, o piccolo-trumpete do FORMIGA, o harmonica (ou gaita de boca) do MAURICIO EINHORN – que também colaborou na gravação dos States – e também uma OCARINA, tentando fotografar em som a região da minha terra – RIO BRANCO, ACRE.

Impressionante a certeza, afinação e confiança na voz de Nana Caymmi na faixa MENTIRAS. Também “fora de série” estão os efeitos de percussão e as vozes de NOVELLI e NANÁ e NANA nas faixas 1) CALA BOCA MENINO, 2) NÃNA DAS ÁGUAS e 3) ME DEIXA (sendo que nesta, a censura não nos deixou cantar a letra de Geraldinho Carneiro).

No CALA BOCA MENINO, ouvem-se os meus metais e no ME DEIXA e NÃNA DAS ÁGUAS ouvem-se os 4 saxofones altos do maestro Gaia.

A novidade que eu introduzi no “QUEM É QUEM” é realmente minha voz. Eu sou João Donato – amigo do piano. Ele gosta mais de mim do que eu dele, porque a qualquer hora que eu chego, ele está à minha espera (sem reclamar a demora). Não digo nada – acaricio e ele fala. Com passes longos – rápidos e rasteiros. E é cada gol lindo, que nem é bom falar. Porque eu te amo. Te amo. Love story.

Na faixa CHOROU… CHOROU, é simplesmente sensacional o joguinho uníssono meu e do Helinho no solo. Entramos os dois dentro do gol, com bola e tudo, que realmente eu nem sei se o gol foi meu ou dele.

ATÉ QUEM SABE e AHIÊ são músicas românticas, com um ótimo trabalho de cordas do meu amigo Dori Caymmi – cobra bem criada, cobra de duas cabeças. E as letras se explicam por si mesmas.

CADÊ JODEL? foi escrita e dedicada à minha filha (hoje com 10 anos de idade) com letra do meu amigo e produtor Marcos Valle. Utilizei mais uma vez “os metais” sendo que desta vez “com surdinas” do princípio ao fim, para evitar o “barulho” do qual já gostei muito quando eu era garoto e comprava tudo que era disco de jazz – o que muito me influenciou naquela época – para contribuir com muitas idéias para a criação da tão falada e agora internacional [BOSSA NOVA].

FIM DE SONHO é realmente uma música para você adormecer ouvindo. Eu já fiz isso. É ótimo. A orquestração é “um banho”. As anotações são do meu amigo Ian Guest, natural da Hungria e radicado no Brasil há 8 anos mais ou menos – o que demonstra a naturalidade com que ele trabalha com os nossos temas.

Enfim, “QUEM É QUEM” é lindo.

Bom proveito e feliz fim de sonhos lindos – céu azul celeste – tempo estável – temperatura aqui na Glória 19°.

P.S. – Ah! ia me esquecendo. O meu melhor “muito obrigado” a Milton Miranda, à nossa querida rainha Elizabeth II e rei Phillip pela oportunidade de fazer uma coisa realmente linda.

Até um dia.

Sempre seu,
João Donato

Rio 13 de setembro de 1973

40 Anos de Quem é Quem …é João Donato

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Dentro da série de comemorações de 80 anos de João Donato em 2014, nos próximos dias 27 e 28 de fevereiro, no Teatro do Sesc Pinheiros, show especial traz o álbum clássico de 1973 de João Donato “Quem é Quem” apresentado pela primeira vez ao vivo. Com banda nova com músicos de São Paulo incluindo integrantes da big band Bixiga 70 e com convidados como as cantoras Tulipa Ruiz e Mariana Aydar e o produtor original do disco, Marcos Valle, o espetáculo relembra o som e as canções do cultuado disco de Donato nos 40 anos do lançamento do LP que trazia hits como “A rã”, “Cala boca menino” e “Amazonas”.

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40 ANOS

João Donato está à vontade. Prestes a completar 80 anos – em agosto de 2014 -, continua produtivo, inspirado e moderno como sempre. Amigo íntimo da Música, Donato passou por todos os estilos ao longo da carreira, sempre livre, sempre à vontade. “Quem é Quem” foi seu primeiro disco com letra e cantado, produzido em 1973 por Marcos Valle no Brasil após longa temporada de Donato nos EUA. Gravado com participações de músicos como Hélio Delmiro, Bebeto Castilho, Lula Nascimento, Naná Vasconcelos e a cantora Nana Caymmi, o álbum trazia arranjos de cordas e sopros de Gaya, Laércio de Freitas, Ian Guest, Dori Caymmi e do próprio Donato, disco-símbolo da sonoridade perfeita dos discos brasileiros dos anos 70.

Carregado de brincadeiras em estéreo, groove no alvo e arranjos geniais, o disco tinha como essência muito piano elétrico com Donato no rhodes, canções instantaneamente clássicas e presença de espírito suficiente para por exemplo colocar no fim de uma música um solo de declamação de carta, falando d’“aquela poeira, rapaz, no caminho da cachoeira”. Com sua naturalidade tranquila e musicalidade máxima, Donato desde sempre fundia a espontaneidade do jazz com um agradável senso pop e musicalidade intensamente brasileira, e em “Quem é Quem” chegou a auge de criatividade em disco, mestre absoluto do zen-groovismo, das harmonias bem encontradas, da eterna busca das notas bonitas, do silêncio bem colocado.

Da mesma geração de João Gilberto e Tom Jobim, João Donato levou seu piano e canções ao jazz americano com músicos como Chet Baker, à música latina de figuras como Mongo Santamaria e Cal Tjader e muito da música brasileira dos últimos 40 ou 50 anos. “Quem é Quem” aparece na sua discografia logo após pérolas psicodélicas como seus discos americanos “A Bad Donato” e “Donato/Deodato” e logo antes dele iniciar relação com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa que renderia canções em parceria e aparições essenciais em discos como “Cantar” de Gal em 74 e “Qualquer Coisa” de Caetano em 1975.

Na época pouco apoiado por sua gravadora, coube a Donato cuidar do lançamento de seu disco “Quem é Quem”, ao subir no Morro da Glória e lá de cima lançar um por um uma caixa inteira de LPs para quem passava por ali. Apresentado ao vivo hoje pela primeira vez, quarenta anos depois do lançamento, o show que acontece no Sesc Pinheiros é especial, com encontro de João Donato com novos músicos de São Paulo, incluindo membros da banda paulistana Bixiga 70, e participação estrelares de Marcos Valle, grande inventivador e produtor do disco em 73, Mariana Aydar, amiga que em seu primeiro disco em 2006 já gravou com Donato, e Tulipa Ruiz, admiração mútua e encontro inédito e afetivo.

Espetáculo carinhosa e artesanalmente criado relembrando e atualizando o som do álbum que trazia clássicos como “A rã”, “Cala boca menino” e “Amazonas”. Com a simplicidade elegante de sua música e a sutileza e beleza que coloca a cada nota e a cada silêncio entre elas, João Donato é músico sem era, de todas as gerações. Seu tempo são todos: música bonita não tem época.

27 e 28 de FEVEREIRO, 21h
SESC PINHEIROS | RUA PAES LEME 195

FICHA TÉCNICA
MÚSICOS
Tulipa Ruiz, voz
Mariana Aydar, voz
Marcos Valle, voz, piano elétrico Fender Rhodes e minimoog
João Donato, voz, piano e piano elétrico Fender Rhodes
Marcelo Dworecki, baixo elétrico
Guilherme Kastrup, percussão
Décio 7, bateria
Mauricio Fleury, guitarra
Anderson Quevedo, sax tenor, sax barítono e flauta
Richard Fermino, trombone, clarone e flauta
Cuca Ferreira, sax barítono, flauta e flautim
REPERTÓRIO
Chorou, chorou (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Terremoto (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Amazonas (João Donato)
Fim de sonho (João Donato / João Carlos Pádua)
A rã (João Donato / Caetano Veloso)
Ahiê (João Donato / Paulo Cesar Pinheiro)
Cala boca menino (Dorival Caymmi)
Nãna das águas (João Donato / Geraldo Carneiro)
Me deixa (João Donato / Geraldo Carneiro)
Até quem sabe (João Donato / Lysias Enio)
Mentiras (João Donato / Lysias Enio)
Cadê Jodel (João Donato / Marcos Valle)
Não tem nada não (João Donato / Eumir Deodato / Marcos Valle)
Flor de maracujá (João Donato / Lysias Enio)
REALIZAÇÃO
Direção Ronaldo Evangelista
Produção Executiva Agogô Cultural
Técnico de som Fernando Narcizo
Técnico de PA Rubinho Marques
Desenho de Luz Marcos Franja
Roadie Júnior Zorato
Apoio Estúdio Traquitana
Foto Manoela Cardoso

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Onze álbuns gravados em estúdio e metade disso ao vivo – cinco e meio. Menos de 17 discos de registro do som que tanto impacto causa na música há 50 anos: a voz e violão de João Gilberto. Mais de cinco décadas depois, o assombro e a influência que a arte de João Gilberto ainda inspira são os mesmos de quando lançou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1959. João Gilberto já sabia tudo: constantemente reinventando e evoluindo suas canções e interpretações, toda sua obra é lida como a evolução de uma sonoridade única, elaboradamente simples e infinitamente sofisticada. Logo abaixo (originalmente para o Uol em 2011, nos 80 anos de João), sua discografia comentada, do primeiro disco, lançado em 1959, até o mais recente, de 2004.


“Chega de Saudade” (1959)

Depois de participar do disco “Canção do Amor Demais” (de Elizeth Cardoso) e lançar dois 78 rotações em 1958, João Gilberto chegou à modernidade dos LPs ajudando a inventá-la. A voz íntima do ouvido, o som de violão absolutamente claro, a abordagem ao mesmo tempo casual e lapidada: eram muitos elementos novos que somavam àquele núcleo de criação exemplar. Além da remodernização de antigos sambas da década de 40 – um Dorival Caymmi, um Marino Pinto, dois Ary Barrosos -, contribui muito com o sabor de novidade a presença do produtor Tom Jobim, com três canções, seus pianos discretos e seus arranjos cheios de pequenos detalhes nas cordas e sopros, como contracantos de João.

Grande momento: “Morena boca de ouro”, releitura de um sucesso de 1941 de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas, aqui com o piano de Tom Jobim e a economia do arranjo impressionantes até hoje.


“O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960)

O segundo LP de João Gilberto já começava ousado na capa, em preto-e-branco solarizado, criada por Cesar Villela, que em breve faria as famosas capas da gravadora Elenco. Gravado pouco mais de seis meses depois do primeiro disco, e novamente com direção musical de Tom Jobim, o álbum trazia no repertório seis novas canções do produtor, mais um Caymmi e um antigo sucesso nunca gravado do tempo de conjuntos vocais: “O Pato”.

Grande momento: Abrindo com vocalises que reinventam as harmonias da versão original do conjunto vocal Anjos do Inferno, de 1945, “Doralice”, de Caymmi, ganha versão definitiva com João Gilberto, em nada além de um minuto e 29 segundos. De acompanhamento, além de seu violão e leve percussão, a modernidade do piano delicado e cristalino de Tom Jobim e breves comentários da flauta no contraponto.


“João Gilberto” (1961)

No mesmo fôlego, um ano depois foi gravado o terceiro LP, homônimo, de João Gilberto. Em algumas faixas, acompanhado do conjunto do pianista Walter Wanderley, todo o resto novamente com Tom. Além de três novas do produtor, o repertório continua lembrando antigos sambas dos anos 40, desta vez com dois Caymmis, um Geraldo Pereira e um Bide/Marçal.

Grande momento: “A primeira vez”, samba de Bide e Marçal cantado por Orlando Silva em 1939, surge em versão quase invertida: o volume do original é traduzido em arranjo quase solo de voz-e-violão, apenas com o piano ocasional de Tom.


“Getz/Gilberto” (1964)

E então, o mundo descobriu. Gravado em Nova York ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz (e com Tom ao piano), o álbum foi lançado pela gravadora de jazz Verve e se tornou famoso em todo o planeta, ganhando cinco prêmios Grammy. Cantada pela mulher de João, Astrud, “Girl from Ipanema” saiu em single (sem a voz de João) e vendeu mais de um milhão de cópias – a canção se tornou uma das mais regravadas da história.

Grande momento: O máximo de sublime de João em disco se revela em sua interpretação de “Pra machucar meu coração”, do então recém-falecido Ary Barroso, que João muito admirava e havia acabado de conhecer. Perfeição no piano de Tom, sax de Getz, baixo e bateria de Tião Neto e Milton Banana, e João, no seu mais suave e musical.


“Getz/Gilberto II” (1964)

O primeiro disco ao vivo (ou meio) de João, gravado no Carnegie Hall em outubro de 1964, lado B de um LP com Stan Getz do outro. Na versão em CD, cinco faixas bônus trazem João e Getz juntos, com Astrud.

Grande momento: Apesar de não manter a aura de magia do encontro em estúdio, “Você e eu” ao vivo é mais um interessante encontro do violão ritmado do João com o sax jazzístico de Getz e a voz vaporosa de Astrud.


“En Mexico” (1970)

Gravado durante temporada de João Gilberto no México, como já fica claro no título, o álbum só foi gravado seis anos depois do último, e desta vez com arranjos de Oscar Castro Neves. Entre as novidades do repertório, três boleros, dois Jobins, duas autorais sem letra e uma composição de seu amigo João Donato gravada dois anos antes por Sergio Mendes: “The Frog”.

Grande momento: João canta tão próximo do microfone que sua respiração funde-se com sua voz com inigualável efeito de intimidade com o ouvinte em “Astronauta” (também conhecida como “Samba da pergunta”), só com seu violão, piano pontuando e etéreas cordas ao fundo.


“João Gilberto” (1973)

O auge do minimalismo zen de João, gravado novamente em Nova York. Desta vez acompanhado apenas do percussionista Sonny Carr e, em uma faixa, da voz de sua então nova esposa, Miúcha. Além de um Jobim, três faixas sem letra e mais alguns sambas antigos, a grande novidade são canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Grande momento: É irresistível acompanhar as harmonias vocais que João cria em contracanto com Miúcha em “Isaura”, sua versão do samba de 1945 de Francisco Alves. João, virtuose dos detalhes.


“Best of Two Worlds” (1976)

Com repertório baseado no chamado “álbum branco”, de três anos antes, traz novo encontro com Stan Getz, mais de dez anos depois do “Getz/Gilberto” original. Duas faixas são cantadas solo por Miúcha e uma novidade do repertório é “Retrato em Branco e Preto”, parceria do irmão da noiva, Chico Buarque, com Tom Jobim.

Grande momento: Cantada com serenidade e emoção por João, “Ligia” é uma novidade de Tom Jobim até hoje: João canta a primeira versão da letra, diferente da que depois ficou mais conhecida, com retoques de Chico Buarque. Getz aparece com dois solos dobrados, sobrepostos com melodias diferentes.

(Bônus momento: “É preciso perdoar“.)


“Amoroso” (1977)

Trazendo composições em inglês, italiano e espanhol e arranjos de orquestra do alemão Claus Ogerman – que havia cuidado da orquestra nos discos solo de Tom Jobim -, “Amoroso” foi desde seu lançamento recebido como momento de gala para João e é até hoje um de seus álbuns mais conceituados entre jazzistas.

Grande momento: Não é nem preciso entender a letra em italiano de “Estate” para ficar tocado com sua sensibilidade. Lendo-se, então, o “verão que criou nosso amor” e agora é um “legado de dor”, emocionante.


“João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” (1980)

Segundo disco ao vivo de João, de um especial de TV da Rede Globo com plateia, orquestra e participações de sua filha Bebel Gilberto (então com 14 anos) e Rita Lee. Johnny Alf e Lamartine Babo são surpresas do repertório.

Grande momento: Antiga marchinha de 1939 de Lamartine Babo, cantada por Mário Reis em dueto com Mariah, “Jou Jou Balangandãs” vira pura bossa com a voz da tropicalista Rita Lee, interpretações em pura doçura.


“Brasil” (1981)

Gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia: o violão de João, comentários dramáticos nas cordas e percussões e as quatro vozes se fundindo – Bethânia canta suave como nunca antes ou depois. Quase um disco conceitual sobre a Bahia, com versões de Caymmi, Ary Barroso e, novidade, Os Tincoãs.

Grande momento: Versão do standard americano “All of me” pelo letrista Haroldo Barbosa, “Disse alguém” é uma pérola, com João fazendo uma adaptação jazzística da sua batida ao violão, pequenas alterações na melodia e toda uma nova cor nas imagens em português.


“Ao Vivo em Montreux” (1986)

Terceiro disco ao vivo e um dos melhores momentos de João no palco, foi gravado – todo de voz e violão – no famoso festival de jazz suíço em 1985 e lançado em LP duplo, depois CD simples com duas músicas a menos.

Grande momento: O antigo sucesso de 1948 de Haroldo Barbosa na voz d’Os Cariocas, “Adeus América”, ganha todo um novo contexto na voz mântrica de João Gilberto, que tanto tempo morou nos Estados Unidos e havia retornado ao Brasil há pouco.


“João” (1991)

Com arranjos de cordas do americano Clare Fischer sobre a base de violão e voz de João, o disco não atinge os mesmos níveis de Amoroso, mas tem ótimo repertório, com Noel Rosa, Cole Porter, bolero, chanson.

Grande momento: João parece ter total controle sobre como fazer o tempo parar, andar para frente ou para trás em seus ritmos de violão e andamentos vocais. Em “Eu sambo mesmo”, de Janet de Almeida, cantada pelos Anjos do Inferno em 1946, o sublime é atingido já nos primeiros segundos.


“Eu Sei Que Vou Te Amar” (1994)

O quarto disco ao vivo de João e o mais sem graça, com mixagem imperfeita, edição brusca e repertório sem surpresas. “Você não sabe amar” é boa novidade.

Grande momento: “Lá vem a baiana”, de Caymmi, sempre perfeito na voz de João.


“Live at Umbria Jazz Fest” (1996/2002)

Quinto disco ao vivo de João, gravado na Itália em 1996 e lançado em CD em 2002. Mais atualizações de canções de todas as fases da carreira de João.

Grande momento: “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, tão conhecida e sempre tão nova com João.


“Voz e Violão” (1999)

Produzido por Caetano Veloso, foi o último de estúdio gravado por João e o único inteiramente só de voz e violão. O repertório recupera sambas antigos de Bororó, Herivelto Martins, uma raridade de Tom Jobim, dois Caetanos e novas lapidações de “Chega de saudade” e “Desafinado”, cada vez mais sintéticas.

Grande momento: Dessa vez João Gilberto não foi tão longe, apenas 1980, para encontrar uma maravilha. “Você vai ver” foi lançada no álbum Terra Brasilis, de Tom Jobim, como uma elegante canção de fim de amor, aqui transformada em pura candura.


“In Tokyo” (2004)

País que cultua João Gilberto talvez até mais que o Brasil e recebe visitas frequentes para turnês, o Japão rendeu o mais recente disco ao vivo de João, sexto de sua carreira. Gravado em 2004, João tinha então 73 anos e faz ótima performance, tranquila e depurada.

Grande momento: Aracy de Almeida cantava “Louco” de Wilson Batista em 1946, e desde os anos 50 João a traz em seu repertório, apesar de nunca tê-la gravada em estúdio. Canta ao vivo a história do louco que chora e anda pelas ruas, transformando-se até num vagabundo.

Myriam Taubkin sobre Amado Maita

De família muito ligada à música, cantora e ouvinte curiosa desde cedo, Myriam Taubkin cresceu entre figuras-chave de muita música em São Paulo, ela própria grande produtora e curadora de diversos projetos legais há muitos anos. Inteligente e elegante, foi generosa e amorosa e ótima ajuda na pesquisa para realização do show em homenagem a Amado Maita, que acontece este próximo fim de semana no Sesc Pinheiros, companheira próxima que foi de Amado. Amigos de adolescência, foram casados por dez anos, entre os anos 70 e 80, juntos na fase mais produtiva de Amado. A meu pedido, Myriam escreveu belo texto com algumas lembranças pessoais, emocionais e musicais, breve retrato de um momento, dela, de Amado, da vida, da música e da cidade.

Conheci Amado Maita aos 16 anos, quando o vi na platéia do então festival de música do clube Alto de Pinheiros, onde me apresentava com um grupo defendendo a canção “Reflexão”, de sua autoria, que faria parte do único álbum de Amado, lançado no ano seguinte. Daniel, meu irmão, nos apresentou. Mesmo sendo classificada, ele considerou nossa interpretação ruim e quis ele mesmo defendê-la na final. Ganhou o troféu de melhor intérprete.

Ficamos muito amigos. Eu vinha de uma educação judaica, cheia de regras de boa educação em casa. Estava no primeiro científico do Colégio Rio Branco. Quando entrei pela primeira vez na casa do Amado, na rua Santo Antonio no Bixiga – era um almoço familiar normal, em algum dia da semana – fiquei atônita com a algazarra, o bom humor e a troca de afetos e insultos na mesa, enquanto comiam macarrão ao sugo, frango assado com batatas e outros quitutes da cozinha italiana, misturada com a árabe, preparados pela mãe dele, Dona Bernadete.

Acho que foi ali que descobri o Brasil, um outro Brasil.

Foi quando convivi de fato com a mestiçagem brasileira, com todo tipo de gente das mais diversas profissões, formais e informais, dentro e fora da legalidade daquela época, amigos do Amado e de seu pai, Hassam – Tito para os íntimos. Tito tinha um estacionamento na Rua Santo Antonio, na famosa ‘5 esquinas’, era querido no bairro e fora dele, recebendo gente pra uma conversa na calçada o dia todo. Amado era seu principal ajudante. Super simpático, inteligente, apaixonado por música, um talento para compor, tocar violão e cantar (e dançar! Como o Amado dançava, não tinha pra ninguém), atraía para ele a nata dos músicos da noite de São Paulo.

Foi com Amado que ouvi Tom Jobim, João Gilberto, Milton Nascimento, João Donato, Miles Davis, John Coltrane, Charles Mingus, Moacir Santos e tantos outros.

Anos depois nos casamos. Tivemos duas filhas.

Lembro quando em 1992, época em que eu produzia a série Arranjadores, no Cultura Artística, trouxemos – meu irmão Benjamim e eu – Moacir Santos da California, onde ele vivia, como um dos artistas convidados. Por conta do Amado, já conhecíamos toda a obra de Moacir e cantávamos, inclusive as meninas, grande parte de suas músicas no nosso cotidiano em casa. Quando o conheci naquela ocasião, e já separada do Amado havia anos, a primeira idéia que me veio à cabeça foi levar Moacir de surpresa ao estacionamento. Parei o carro, buzinei pro Amado e enquanto ele se aproximava, abri a porta do lado da calçada. Ao ver a figura de Moacir assim de sopetão, um ídolo pra ele, Amado abriu um sorriso, ficou numa alegria que contagiou tudo em volta. Fiquei feliz e eles se tornaram bons amigos.

Moramos em várias casas, em bairros diferentes da cidade. Pra qualquer nova morada que seguíamos, muitos amigos do Amado nos acompanhavam e também mudavam de endereço pra permanecerem perto dele.

Além da Teresa e da Luísa, devo muito ao Amado. Foi meu principal amigo e companheiro entre os meus 16 e 30 anos, período de formação de qualquer pessoa. Tínhamos muito assunto, sempre. Vivemos juntos durante 10 anos e continuamos amigos até o dia em que ele se foi.

Retrospectiva 2012

A pedido dos chapas d’OEsquema, fiz uma lista – altamente afetiva e certamente incompleta – de algumas coisas favoritas do meu 2012. Tópicos, abaixo.


*Conhecer Belém, assistir lá o Terruá Pará e encontrar os discos que renderam a mixtape Ver-O-Peso.


*O DVD “João Donato – MPB Especial (1975)“.


*Os álbuns “Tudo Tanto” de Tulipa Ruiz, “Metal Metal” do Metá Metá e “Meu Samba no Prato” do sexteto MP6, além do 10″ “Pra Viagem“, da Kika.


*O show de Stanley Clarke, Chick Corea e Lenny White no Via Funchal em maio.


*O box “O Brasil de Inezita Barroso“, na verdade de 2011 mas que só peguei este ano.


*Encontrar Mateus Aleluia dos Tincoãs na sua cidade natal de Cachoeira e passar uma semana no interior da Bahia.


*Os textos de Bráulio Tavares no blog “Mundo Fantasmo“.


*A série “Sherlock“, da BBC, que teve sua segunda temporada este ano (e em 2012 vi as duas).

*O programa “Temporal“, dirigido por Kiko Goifman e Olívia Brenga e exibido pela Sesc TV.


*O filme “Tropicália” de Marcelo Machado e suas maravilhosas imagens de arquivo.


*Tocar com meus parceiros do Veneno Soundsystem em algumas dezenas de festas ao longo do ano e completar o quinto aniversário do coletivo.


*O LP triplo “The Original Sound of Cumbia – The History of Colombian Cumbia & Porro As Told By The Phonograph 1948-79 Vol. 1“.


*Juçara Marçal cantando “Jardim Japão” no show de lançamento do LP “Bahia Fantástica” de Rodrigo Campos no Sesc Vila Mariana.

*Viajar a Buenos Aires para conhecer a ciudad, discotecar na Fiesta del Funk Naciente no Niceto Club e encontrar o compacto de “Todo es moda“, de Pedro Santos y Sebastião Tapajós.


*O livro “João Gilberto“, organizado por Walter Garcia e lançado pela Cosac Naify.

*A nova lei 12.485 da TV paga.

pobre de quem não entendeu que a beleza de amar é se dar

Originalmente gravada pelo MPB4 em 1967, “É preciso perdoar” é uma joia de composição dos baianos Carlos Coqueijo e Alcyvando Luz que encontra seu auge na interpretação econômica, cíclica e cheia de nuances que a revelam por João Gilberto, em seu belo álbum branco homônimo de 1973. Um dos máximos pontos em que a secura do canto de João funciona como amplificador da emoção sugerida, desde lançada a música ganhou amplo status de favorita pessoal entre ouvintes – momento muito especial de um LP especial dentro uma discografia especial de um artista especial.

Três anos depois, João reencontrou-se em estúdio com Stan Getz (com quem havia gravado Getz/Gilberto em 1963), e basicamente refez o álbum de 73, exceto que onde antes havia apenas João voz e violão acompanhado das leves vassourinhas de Sonny Carr, aqui somamos contrabaixo, bateria com aro, piano, percussões variadas e, claro, solos de saxofone tenor. Não supera nem de perto a limpeza do solo, mas é muito bom de ouvir as diferenças criativas de João numa época incrível, com repertório excepcional e de certa maneira revendo a situação de seu disco mais famoso de mais de uma década antes.

É preciso perdoar” é uma das três faixas que tiveram takes alternativos lançados em uma reedição recente do álbum, The Best of Two Worlds, dentro de um box sob demanda de Getz (obrigado ao comentarista do post!). Levemente diferente, igualmente hipnotizante, atenção aos sons da percussão no começo, o raro baixo acompanhando João, as notas longas cantadas ao fim de cada verso, play acima.

Os vinis de Marcelo Callado & Nina Becker

A sala, a estante e os favoritos da coleção do casal carioca, de Velvet Underground a Luiz Melodia, de João Gilberto a Syd Barrett, discos e comentários filmados por Leo Aversa em meados do ano passado.

Por algum motivo misterioso o vídeo não se permite ser embedado, então assista aqui.

Moraes Moreira canta Acabou Chorare

O disco inteiro, em apresentação no IMS, no Rio, só no violão e acompanhado do filho Davi na guitarra, abrindo com trecho de cordel sobre a historia dos Novos Baianos e depois todas as canções do clássico de 1972. Moraes está cantando meio estranho e a formação de dois é magrinha (ainda que Davi seja ótimo), mas o repertório é o melhor do mundo e as histórias são maravilhosas. Como ao contar, aos 22 minutos, do primeiro encontro com João Gilberto, baianos à meia noite no Rio, e, imagine a cena, mostrando a ele a então novíssima “Dê um rolê”, rock afiado. João dizendo a Galvão que dividia o sonho da convivência coletiva, Moraes e Pepeu roubando um acorde por dia nos recitais hippies dentro do closet, aprendendo a olhar pra dentro de si, carne de carnaval e coração igual.

O melhor de dois mundos

Uma coisa absolutamente genial a respeito do disco Best of Two Worlds, reencontro de João Gilberto com Stan Getz em 1975, doze anos depois do sucesso gigante Getz/Gilberto, é que eles não foram fotografados juntos para a capa. Antes do fim das gravações, João tretou com Getz (não era a primeira vez) e partiu. A primeira faixa do LP, “Double rainbow”, nem tem João: Miúcha canta e Oscar Castro Neves toca o violão, reproduzindo a batida direitinho.

A solução: pegar um foto de João (talvez a única à mão) e fazer uma fotomontagem para a capa e outra para a contracapa – ambas com a mesma foto. Na frente, Getz está à frente de João, ao lado de Miúcha. No verso, aparece apoiado casualmente no brasileiro, que toca seu violão concentrado, de olhos semicerrados, estoicamente na mesma pose, exatamente igual a na capa, mesmo registro fotográfico. Mais ou menos como fez a Trip recentemente, rs.

Best of Both Worlds é um dos discos menos comentados e investigados de João, até porque é afinal um álbum de Getz. O recente box The Complete Columbia Album Collection, que compila álbuns de Getz entre 1972 e 1979, reedita o disco com novidade interessante: três faixas bônus, outtakes de “Just one of those things”, “Eu vim da Bahia” e “É preciso perdoar”. A caixa é produzida sob demanda de acordo com as vendas no site, sem presença física em lojas.