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João Gilberto disco-a-disco

Onze álbuns gravados em estúdio e metade disso ao vivo – cinco e meio. Menos de 17 discos de registro do som que tanto impacto causa na música há 50 anos: a voz e violão de João Gilberto. Mais de cinco décadas depois, o assombro e a influência que a arte de João Gilberto ainda inspira são os mesmos de quando lançou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1959. João Gilberto já sabia tudo: constantemente reinventando e evoluindo suas canções e interpretações, toda sua obra é lida como a evolução de uma sonoridade única, elaboradamente simples e infinitamente sofisticada. Logo abaixo (originalmente para o Uol em 2011, nos 80 anos de João), sua discografia comentada, do primeiro disco, lançado em 1959, até o mais recente, de 2004.


“Chega de Saudade” (1959)

Depois de participar do disco “Canção do Amor Demais” (de Elizeth Cardoso) e lançar dois 78 rotações em 1958, João Gilberto chegou à modernidade dos LPs ajudando a inventá-la. A voz íntima do ouvido, o som de violão absolutamente claro, a abordagem ao mesmo tempo casual e lapidada: eram muitos elementos novos que somavam àquele núcleo de criação exemplar. Além da remodernização de antigos sambas da década de 40 – um Dorival Caymmi, um Marino Pinto, dois Ary Barrosos -, contribui muito com o sabor de novidade a presença do produtor Tom Jobim, com três canções, seus pianos discretos e seus arranjos cheios de pequenos detalhes nas cordas e sopros, como contracantos de João.

Grande momento: “Morena boca de ouro”, releitura de um sucesso de 1941 de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas, aqui com o piano de Tom Jobim e a economia do arranjo impressionantes até hoje.


“O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960)

O segundo LP de João Gilberto já começava ousado na capa, em preto-e-branco solarizado, criada por Cesar Villela, que em breve faria as famosas capas da gravadora Elenco. Gravado pouco mais de seis meses depois do primeiro disco, e novamente com direção musical de Tom Jobim, o álbum trazia no repertório seis novas canções do produtor, mais um Caymmi e um antigo sucesso nunca gravado do tempo de conjuntos vocais: “O Pato”.

Grande momento: Abrindo com vocalises que reinventam as harmonias da versão original do conjunto vocal Anjos do Inferno, de 1945, “Doralice”, de Caymmi, ganha versão definitiva com João Gilberto, em nada além de um minuto e 29 segundos. De acompanhamento, além de seu violão e leve percussão, a modernidade do piano delicado e cristalino de Tom Jobim e breves comentários da flauta no contraponto.


“João Gilberto” (1961)

No mesmo fôlego, um ano depois foi gravado o terceiro LP, homônimo, de João Gilberto. Em algumas faixas, acompanhado do conjunto do pianista Walter Wanderley, todo o resto novamente com Tom. Além de três novas do produtor, o repertório continua lembrando antigos sambas dos anos 40, desta vez com dois Caymmis, um Geraldo Pereira e um Bide/Marçal.

Grande momento: “A primeira vez”, samba de Bide e Marçal cantado por Orlando Silva em 1939, surge em versão quase invertida: o volume do original é traduzido em arranjo quase solo de voz-e-violão, apenas com o piano ocasional de Tom.


“Getz/Gilberto” (1964)

E então, o mundo descobriu. Gravado em Nova York ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz (e com Tom ao piano), o álbum foi lançado pela gravadora de jazz Verve e se tornou famoso em todo o planeta, ganhando cinco prêmios Grammy. Cantada pela mulher de João, Astrud, “Girl from Ipanema” saiu em single (sem a voz de João) e vendeu mais de um milhão de cópias – a canção se tornou uma das mais regravadas da história.

Grande momento: O máximo de sublime de João em disco se revela em sua interpretação de “Pra machucar meu coração”, do então recém-falecido Ary Barroso, que João muito admirava e havia acabado de conhecer. Perfeição no piano de Tom, sax de Getz, baixo e bateria de Tião Neto e Milton Banana, e João, no seu mais suave e musical.


“Getz/Gilberto II” (1964)

O primeiro disco ao vivo (ou meio) de João, gravado no Carnegie Hall em outubro de 1964, lado B de um LP com Stan Getz do outro. Na versão em CD, cinco faixas bônus trazem João e Getz juntos, com Astrud.

Grande momento: Apesar de não manter a aura de magia do encontro em estúdio, “Você e eu” ao vivo é mais um interessante encontro do violão ritmado do João com o sax jazzístico de Getz e a voz vaporosa de Astrud.


“En Mexico” (1970)

Gravado durante temporada de João Gilberto no México, como já fica claro no título, o álbum só foi gravado seis anos depois do último, e desta vez com arranjos de Oscar Castro Neves. Entre as novidades do repertório, três boleros, dois Jobins, duas autorais sem letra e uma composição de seu amigo João Donato gravada dois anos antes por Sergio Mendes: “The Frog”.

Grande momento: João canta tão próximo do microfone que sua respiração funde-se com sua voz com inigualável efeito de intimidade com o ouvinte em “Astronauta” (também conhecida como “Samba da pergunta”), só com seu violão, piano pontuando e etéreas cordas ao fundo.


“João Gilberto” (1973)

O auge do minimalismo zen de João, gravado novamente em Nova York. Desta vez acompanhado apenas do percussionista Sonny Carr e, em uma faixa, da voz de sua então nova esposa, Miúcha. Além de um Jobim, três faixas sem letra e mais alguns sambas antigos, a grande novidade são canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Grande momento: É irresistível acompanhar as harmonias vocais que João cria em contracanto com Miúcha em “Isaura”, sua versão do samba de 1945 de Francisco Alves. João, virtuose dos detalhes.


“Best of Two Worlds” (1976)

Com repertório baseado no chamado “álbum branco”, de três anos antes, traz novo encontro com Stan Getz, mais de dez anos depois do “Getz/Gilberto” original. Duas faixas são cantadas solo por Miúcha e uma novidade do repertório é “Retrato em Branco e Preto”, parceria do irmão da noiva, Chico Buarque, com Tom Jobim.

Grande momento: Cantada com serenidade e emoção por João, “Ligia” é uma novidade de Tom Jobim até hoje: João canta a primeira versão da letra, diferente da que depois ficou mais conhecida, com retoques de Chico Buarque. Getz aparece com dois solos dobrados, sobrepostos com melodias diferentes.

(Bônus momento: “É preciso perdoar“.)


“Amoroso” (1977)

Trazendo composições em inglês, italiano e espanhol e arranjos de orquestra do alemão Claus Ogerman – que havia cuidado da orquestra nos discos solo de Tom Jobim -, “Amoroso” foi desde seu lançamento recebido como momento de gala para João e é até hoje um de seus álbuns mais conceituados entre jazzistas.

Grande momento: Não é nem preciso entender a letra em italiano de “Estate” para ficar tocado com sua sensibilidade. Lendo-se, então, o “verão que criou nosso amor” e agora é um “legado de dor”, emocionante.


“João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” (1980)

Segundo disco ao vivo de João, de um especial de TV da Rede Globo com plateia, orquestra e participações de sua filha Bebel Gilberto (então com 14 anos) e Rita Lee. Johnny Alf e Lamartine Babo são surpresas do repertório.

Grande momento: Antiga marchinha de 1939 de Lamartine Babo, cantada por Mário Reis em dueto com Mariah, “Jou Jou Balangandãs” vira pura bossa com a voz da tropicalista Rita Lee, interpretações em pura doçura.


“Brasil” (1981)

Gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia: o violão de João, comentários dramáticos nas cordas e percussões e as quatro vozes se fundindo – Bethânia canta suave como nunca antes ou depois. Quase um disco conceitual sobre a Bahia, com versões de Caymmi, Ary Barroso e, novidade, Os Tincoãs.

Grande momento: Versão do standard americano “All of me” pelo letrista Haroldo Barbosa, “Disse alguém” é uma pérola, com João fazendo uma adaptação jazzística da sua batida ao violão, pequenas alterações na melodia e toda uma nova cor nas imagens em português.


“Ao Vivo em Montreux” (1986)

Terceiro disco ao vivo e um dos melhores momentos de João no palco, foi gravado – todo de voz e violão – no famoso festival de jazz suíço em 1985 e lançado em LP duplo, depois CD simples com duas músicas a menos.

Grande momento: O antigo sucesso de 1948 de Haroldo Barbosa na voz d’Os Cariocas, “Adeus América”, ganha todo um novo contexto na voz mântrica de João Gilberto, que tanto tempo morou nos Estados Unidos e havia retornado ao Brasil há pouco.


“João” (1991)

Com arranjos de cordas do americano Clare Fischer sobre a base de violão e voz de João, o disco não atinge os mesmos níveis de Amoroso, mas tem ótimo repertório, com Noel Rosa, Cole Porter, bolero, chanson.

Grande momento: João parece ter total controle sobre como fazer o tempo parar, andar para frente ou para trás em seus ritmos de violão e andamentos vocais. Em “Eu sambo mesmo”, de Janet de Almeida, cantada pelos Anjos do Inferno em 1946, o sublime é atingido já nos primeiros segundos.


“Eu Sei Que Vou Te Amar” (1994)

O quarto disco ao vivo de João e o mais sem graça, com mixagem imperfeita, edição brusca e repertório sem surpresas. “Você não sabe amar” é boa novidade.

Grande momento: “Lá vem a baiana”, de Caymmi, sempre perfeito na voz de João.


“Live at Umbria Jazz Fest” (1996/2002)

Quinto disco ao vivo de João, gravado na Itália em 1996 e lançado em CD em 2002. Mais atualizações de canções de todas as fases da carreira de João.

Grande momento: “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, tão conhecida e sempre tão nova com João.


“Voz e Violão” (1999)

Produzido por Caetano Veloso, foi o último de estúdio gravado por João e o único inteiramente só de voz e violão. O repertório recupera sambas antigos de Bororó, Herivelto Martins, uma raridade de Tom Jobim, dois Caetanos e novas lapidações de “Chega de saudade” e “Desafinado”, cada vez mais sintéticas.

Grande momento: Dessa vez João Gilberto não foi tão longe, apenas 1980, para encontrar uma maravilha. “Você vai ver” foi lançada no álbum Terra Brasilis, de Tom Jobim, como uma elegante canção de fim de amor, aqui transformada em pura candura.


“In Tokyo” (2004)

País que cultua João Gilberto talvez até mais que o Brasil e recebe visitas frequentes para turnês, o Japão rendeu o mais recente disco ao vivo de João, sexto de sua carreira. Gravado em 2004, João tinha então 73 anos e faz ótima performance, tranquila e depurada.

Grande momento: Aracy de Almeida cantava “Louco” de Wilson Batista em 1946, e desde os anos 50 João a traz em seu repertório, apesar de nunca tê-la gravada em estúdio. Canta ao vivo a história do louco que chora e anda pelas ruas, transformando-se até num vagabundo.

Aloe Blacc quer dar rolê com Hermeto Pascoal

Domingo dia 27 no Rio, dentro do festival Back2Black, terça dia 30 no Bourbon Street em São Paulo, o rimador e cantor de novo soul Aloe Blacc, autor de uma das melhores canções pop americanas dos últimos tempos, “I need a dollar“, se apresenta com sua banda Grand Scheme. Aproveitando o momento, liguei pra ele na Califórnia essa semana pra meia dúzia de perguntas, em matéria publicada hoje na Folha Ilustrada. Abaixo, o papo.

Você já veio ao Brasil?

Nunca fui, vai ser minha primeira vez.

Tenho certeza que você tem alguns músicos brasileiros favoritos…?

Meu interesse na música brasileira nasceu com a bossa nova de Tom Jobim e Astrud Gilberto. Essa foi a primeira coisa brasileira por que me apaixonei. Depois descobri artistas como Jorge Ben, Sérgio Mendes, Arthur Verocai e Flora Purim. Muitas coisas bonitas e diferentes.

E já ouviu alguma coisa sobre o hip-hop brasileiro?

Sim. Ouvi falar muito sobre o grafite e também sobre a cena hip-hop no Brasil, mas ainda preciso conhecer os nomes.

Por aqui também a cena hip-hop tem encontrado equilíbrio com música tocada, cantada. Você acha que o hip-hop e o soul tem encontrado novas relações ultimamente?

Acho que sim. O hip-hop está crescendo – e quando você fica mais velho, quer se expressar de novas maneiras. O meu interesse se virou para a música tocada ao vivo.

Essa influência de soul music é uma coisa que sempre esteve com você ou foi uma novidade quando descobriu?

Foi uma espécie de experimento a princípio. Agora virou meu emprego. (risos) Fiz um álbum chamado Shine Through, em que cantei uma cover de Sam Cooke com uma batida hip-hop, “A change is gonna come”. E também a faixa-título, “Shine through” era uma canção soul. E “I’m beautiful“, do mesmo álbum. Essas foram o começo de minhas experiências com hip-hop e soul. Depois fui me aprofundando mais e mais.

A inspiração para escrever “I need a dollar” foi próxima de escrever um rap?

Foi mais ou menos. Quando escrevi “I need a dollar” estava ouvindo canções folk. Músicas de presos acorrentados uns aos outros, de pessoas que estavam encarceradas e trabalhando como parte de sua pena, cantando para ajudar no trabalho. Cantando suas próprias músicas e dividindo as canções enquanto trabalham. Muitas histórias seriam sobre seus problemas – e me inspirei a criar minha propria canção de presos acorrentados. Essas canções são muito repetitivas e são comunitárias, envolvem mais de uma pessoa. E quando estava escrevendo os versos, acrescentei coisas da minha vida pessoal.

Imagino que tenha sido uma surpresa quando ela começou a ficar famosa.

Nunca esperei que fosse ser um grande hit. Achei que fosse ser como todo o resto, uma canção undeground de que as pessoas gostam, como meu último álbum. Mas se tornou algo muito grande. Acho que todo mundo a conhece hoje, pessoas de quatro anos e pessoas de 64 anos, todos cantam.

Ok, última pergunta: que músico você gostaria de encontrar nessa vinda ao Brasil?

Hmm. Sabe o que seria muito legal? Passar o dia com alguém como Hermeto Pascoal. Como um músico, tenho visto as coisas que ele tem feito pelos anos e ouvido a música que ele tem feito e seria muito interessante e divertido e empolgante passar um dia fazendo um som com ele – ou simplesmente o assistindo.

Donato & McCartney

Eu estive com o McCartney lá em Londres. Quando eu estive lá com a Astrud Gilberto, quando ela se tornou a Garota de Ipanema oficialmente.

Eu gravei no primeiro disco dela e nós fizemos umas excursões. Quando chegamos em Londres, tava o Paul McCartney assistindo a gente lá numa mesa, ele e a namorada dele. Nós fomos, naturalmente, ser apresentados a ele, porque o empresário falou, “olha, o Paul McCartney tá aí”. Tomamos um drinque juntos.

Quem não conhecia a música “Garota de Ipanema” na época? Ele só queria conhecer a Garota de Ipanema pessoalmente, então foi obrigado a me conhecer junto, que eu era o diretor artístico dela, e o Dom Um Romão era o baterista. O baixista era o Don Payne, americano.

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De uma conversa com o Donato, anos atrás. No vídeo meramente ilustrativo, o ponto de encontro, Astrud Garota de Ipanema em 1965, toda tímida na TV, com matéria em francês sobre o primeiro solo e o Getz/Gilberto, mais todo o charme de spots de luz e uma poltrona, com “Água de Beber”.

you hear they calling me rapaz de bem

Dia desses li na Folha coluna do Ruy Castro, com título Rapaz de Bem, sobre Johnny Alf – que acabou de completar 80 anos ontem. Fiquei pensando no Johnny Alf, Ruy Castro, Folha, Rapaz de Bem, lembrei: escrevi matéria pra mesma Folha um tempo atrás sobre Johnny com mesmo título, aliás com aspas do Ruy Castro. // Títulos óbvios à parte (deve ter havido outras 297 matérias com a mesma chamada antes da minha e do Ruy), Johnny Alf é realmente algo mais, provavelmente o maior jazz singer popular brasileiro. A sofisticação do samba dos anos 40 chegando à década seguinte querendo se modernizar, com sotaques de Sarah Vaughan e Nat King Cole, pra citar dois que ele próprio me contou ouvir muito e emprestar o repertório pra cantar na noite.

Aproveitando o embalo, Rapaz de Bem, matéria que escrevi pra Folha quando Johnny Alf lançou Mais Um Som, primeiro disco de inéditas em 28 anos – e um dos únicos em que é gravado ao piano. Pro texto, ouvi o Johnny, conversei com Ruy Castro e resolvi ligar pro Donato – que mandou um fristáile lindo que fiquei feliz de manter no texto final.

Depois continua que tem outra dessas e um doce pra quem chegar até o final.

Rapaz de bem

Vinte e oito anos. Parece inacreditável, mas é o tempo desde a última vez em que o cantor, pianista e compositor Johnny Alf lançou no Brasil um álbum novo, gravado em estúdio, de músicas inéditas. “Desbunde Total”, de 1978, foi o último -desde então, apenas discos ao vivo, regravações com convidados, tributos a outros compositores. Mesmo assim, pouquíssimos, com intervalos enormes entre eles. Muito pouco para um músico do tamanho de Johnny Alf.

A boa notícia é “Mais Um Som”, gravado em 2002, lançado no Japão em 2004, recém-desembarcado no Brasil em edição nacional: a aguardada quebra do jejum, com 15 composições inéditas na voz do autor. Amanhã acontece show de lançamento do disco, com o mesmo quinteto que acompanha Alf há década e meia e com quem gravou o álbum.

Realizado pelo produtor japonês Jun Itabashi, o disco surgiu com a proposta de se fazer um CD com músicas novas, sem os hits de sempre da história do compositor, e com sonoridade acústica lembrando álbuns dos anos 60.

O formato é ideal, e o disco já nasce como um dos melhores da discografia de Alf -por ter sido gravado com pequena formação, é perfeito para se ouvir em detalhes seu piano, sua voz, suas composições, a improvisação dos músicos que o acompanham.

Ele fazia antes, diz Ruy Castro
“Cada disco novo de Johnny Alf é um acontecimento na música popular brasileira”, observa o escritor e jornalista Ruy Castro, autor dos livros sobre a bossa nova “Chega de Saudade” e “A Onda que se Ergueu no Mar”, este último com capítulo dedicado a Alf.

Ruy Castro lembra a importância do músico: “O Johnny Alf, sem dúvida, foi um grande precursor da bossa nova, na década de 50. É um processo que já vinha desde os anos 40, pelo menos -a bossa nova era apenas uma inovação em cima de uma bossa brasileira que já existia, a conclusão de um processo evolutivo. E o Johnny Alf, assim como o João Donato, já era bastante evoluído dentro desse processo todo -ou seja, ele já era uma bossa nova dez anos antes da bossa nova”.

O próprio João Donato, também pianista, se lembra da época e do que significava para ele Johnny Alf. “No tempo que a gente era mais moderno, mais garoto, era uma troca de informações entre nós mesmos e quem podia informar as coisas para gente era Johnny Alf. Ele teve papel fundamental no desenvolvimento harmônico da minha música, me ensinava não como uma teoria, mas um estado de espírito. Você sente no resultado prático e oculto da música que ela não tem números, tem apenas um efeito sobre a sua alma. Com um som você consegue ficar alegre ou triste, enraivecido ou amoroso. Se você consegue sentir um som, ele tem uma importância mais que fundamental, é vital. E o que eu aprendi de bom, aprendi com Johnny Alf. Dizem que nosso som era moderno. Continua sendo! Uma vez moderno, sempre moderno. Isso independentemente de uma data cronológica. O som é moderno porque é bonito, sempre foi e sempre será. Não precisa passar por uma época ou outra.”

Influência do jazz
Johnny Alf, que continua moderno hoje, se lembra de como nasceu aquele som. “Eu ouvia muito Sarah Vaughan e Nat King Cole, cantava muito o repertório deles na boate. Aí, aprendi a usar o jazz como cobertura na minha música. Eu fazia aquilo que eu tinha adquirido no tempo, com música americana, compositores antigos que já tinham uma harmonia aperfeiçoada, Garoto, Custódio Mesquita, [Dorival] Caymmi. Na época, havia um interesse comum entre eu, Donato, Tom [Jobim] em fazer algo moderno. Mas eu não pensava no que ia fazer, tocava e saía naturalmente.”

Tão naturalmente que aquilo se tornou o primeiro ponto definitivo de mudança, o norte de todos os músicos que fariam a revolução alguns anos depois. Desde 1954, Johnny Alf se apresentava na boate do Hotel Plaza, no Rio Janeiro, e parte do público que batia cartão ali para vê-lo era formado por Tom Jobim, João Gilberto, João Donato, Carlos Lyra e Roberto Menescal. No ano seguinte, Alf se mudaria para São Paulo e por aqui ficaria definitivamente, gravando seus primeiros LPs no começo da década seguinte, após alguns influentes 78 rotações.

Sempre cult, continuou lançando discos e fazendo shows, ou pelo menos sendo genial, mesmo com a produção baixa. Agora, hora de comemorar a volta triunfal e não deixar o ritmo cair.

Viagem no tempo pra um pouco antes, ainda não havia Mais Um Som, mas Johnny fazia show e valia pauta. Repara na história do disco que ouvi dele e usei pra concluir o texto.

Johnny Alf retorna ao palco com sua melodia sinuosa

Estilista fundamental da música brasileira, responsável pelas primeiras revoluções que dariam origem à bossa nova, o cantor e pianista Johnny Alf oferece amanhã e sábado chance rara de ser visto e ouvido em pessoa, dentro do projeto Toca Brasil, do Itaú Cultural. Com poucos discos lançados -a maioria deles fora de catálogo- e sem fazer apresentações freqüentes, Alf anda quase esquecido, apesar do status cult que geralmente vem associado a seu nome.

Atualmente com 75 anos, o músico diz que segue produzindo e continua compondo, mas não sabe explicar o motivo de não lançar álbum novo no mercado brasileiro há cinco anos. “A música mudou muito, não sei se o meu estilo agrada às pessoas de hoje”, esquiva-se. Uma das maiores razões, sabe-se, é sua personalidade extremamente tímida e introvertida, que o torna reservado e dono do seu próprio ritmo. “Hoje em dia os discos são gravados muito rapidamente, não gosto disso. Prefiro fazer tudo mais devagar, escolher bem o repertório, pensar nos arranjos”, explicita.

Músico da noite desde meados dos anos 50, costumava ter em seu público cativo admiradores como Tom Jobim, João Gilberto e Baden Powell. Compositor muito influenciado pelo jazz, lançou seu primeiro compacto de 78 rotações em 1952 e por toda a década criou clássicos de melodia sinuosa e harmonia sofisticada -como “Eu e a Brisa”, sua canção mais famosa- que se tornaram referências essenciais para os músicos que depois inventariam a modernidade da bossa nos anos 60.

Reverência
Nascido Alfredo José da Silva no Rio de Janeiro, Johnny Alf em 1955 veio morar em São Paulo, onde vive até hoje. No auge da música popular moderna, quando era reverenciado por toda a geração imediatamente posterior à sua, dividiu seu tempo entre as duas cidades. Como em 1962, quando foi ao Rio regularizar sua carteira de músico profissional e acabou passando temporada de jam sessions com os músicos de samba-jazz do Beco das Garrafas.

“Nós” (EMI, 1974) e “Desbunde Total” (Warner, 1978), produtos da mistura de samba-bossa, funk e experimentações sonoras do Brasil dos anos 70, são os dois únicos registros do Johnny Alf clássico encontráveis nas lojas hoje. Além desses, pode-se esbarrar em algum disco ao vivo dos anos 90, mas nem sinal de seus primeiros álbuns, peças-chave da bossa, ou mesmo discos mais recentes, gravados para os mercados americano e japonês, ainda inéditos.

Faz falta também, há 40 anos, um lendário LP nunca lançado, em que ele interpreta versões de standards da bossa em inglês, coisas como “Little Boat” e “One Note Samba”.

A gravação foi feita na primeira metade dos anos 60 na gravadora RCA, atual BMG. “Gosto bastante desse disco, foi muito bom fazer e o resultado saiu ótimo. Não sei por que a gravadora não editou. Talvez eles ainda lancem, não dá pra entender”.

No mesmo fôlego, apareceu aqui, nem lembro como, a exata gravação que ele comenta poucas linhas acima. Nunca li ou ouvi qualquer outra referência sobre o tal disco, então foi uma surpresa agradável ouvir – apesar da falta de excepcionalidade. A interpretação e sotaque de Johnny soam ótimos, com sua voz de caramelo à Nat Cole e brincadeiras vocais à Sarah Vaughan; mas a base é bossa nova de caixinha de música esquema linha de produção – justo, muito por conta da baixa fidelidade de gerações de cópias em cassetes ou rolos passadas adiante.

Vale pelo charme torto das versões em inglês de “Rapaz de Bem”, “Sky and Sea” e “Excuse Me Mr Chopin” (e das obrigatórias “Desafinado”, “Meditação” et cetera), nascidas do mesmo impulso que gerou discos em inglês, pela mesmo época de explosão mundial da bossa, de Carlos Lyra, Astrud Gilberto, Tom Jobim, Marcos Valle.

Doze músicas, Johnny Alf em 1963, em inglês, aqui.

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(Fotos pelo post? Eugênio Vieira, claro.)